O HOMEM E A MULHER - VICTOR HUGO

O homem é a mais elevada das criaturas.
A mulher é o mais sublime dos ideais.
Deus fez para o homem um trono;
Para a mulher um altar.

O trono exalta; o altar santifica.
O homem é o cérebro; a mulher o coração, o amor.
A luz fecunda; o amor ressuscita.
O homem é o gênio; a mulher o anjo.

O gênio é imensurável; o anjo indefinível.
A aspiração do homem é a suprema glória;
A aspiração da mulher, a virtude extrema.
A glória traduz grandeza; a virtude traduz divindade.

O homem tem a supremacia; a mulher a preferência.
A supremacia representa força.
A preferência representa o direito.
O homem é forte pela razão; a mulher invencível pelas lágrimas.

A razão convence; a lágrima comove.
O homem é capaz de todos os heroísmos;
A mulher de todos os martírios.
O heroísmo enobrece; os martírios sublima.

O homem é o código; a mulher o evangelho.
O código corrige; o evangelho aperfeiçoa.
O homem é o templo; a mulher, um sacrário.
Ante o templo, nos descobrimos;

Ante o sacrário ajoelhamo-nos.
O homem pensa; a mulher sonha.
Pensar é ter cérebro;
Sonhar é ter na fronte uma auréola.

O homem é um oceano; a mulher um lago.
O oceano tem a pérola que embeleza;
O lago tem a poesia que deslumbra.
O homem é a águia que voa; a mulher o rouxinol que canta.

Voar é dominar o espaço; cantar é conquistar a alma.
O homem tem um fanal; a consciência;
A mulher tem uma estrela: a esperança.
O fanal guia, a esperança salva.

Enfim...
O homem está colocado onde termina a terra;
A mulher onde começa o céu...

O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo

O Corcunda de Notre-Dame - Hugo, Victor, 1802-1885.

Adaptação em português e textos suplementares Welington Andrade

Sumário

Capítulo 1 A grande sala
Capítulo 2 Esmeralda
Capítulo 3 0 jarro quebrado
Capítulo 4 As boas almas
Capítulo s A magistratura
Capítulo 6 O buraco dos ratos
Capítulo 7 Uma lágrima por uma gota d'água
Capítulo 8 Fatalidade
Capítulo 9 A moeda transformada em folha seca
Capítulo 10 A mãe
Capítulo 11 Corcunda, caolho, manco
Capítulo 12 Gringoire tem boas idéias
Capítulo 13 Viva a alegria
Capítulo 14 Châteaupers vem em socorro Por dentro do texto

O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 1

CAPÍTULO 1
A grande sala

No dia 6 de janeiro de 1482, os parisienses acordaram ao som de todos os sinos soando com força na cidade. O que emocionava o povo era a celebração do Dia de Reis e da Festa dos Loucos. Haveria fogueiras na Praça da Greve, a plantação de uma árvore na Capela de Braque e a representação de um mistério - a forma teatral mais popular da época - no Palácio da Justiça.
A multidão de burgueses movimentava-se por todas as direções desde a manhã e as casas e as lojas estavam fechadas nas proximidades de cada um dos locais dos festejos. Deve-se dizer que a maior parte das pessoas dirigia-se ou para as fogueiras, muito comuns naquela época, ou à representação teatral.
A peça começaria apenas ao soar a décima segunda badalada do meio-dia no relógio do Palácio e seria representada sobre uma plataforma com muitos ornamentos dourados. Já era tarde para um espetáculo teatral, no entanto, a platéia o aguardava desde a manhã, aumentando sem cessar. O desconforto, a impaciência, as brigas que ocorriam constantemente e a fadiga de uma longa espera davam um clima ácido e amargo ao murmúrio da multidão encurralada, irritada e sufocada.
Ouviam-se apenas reclamações e maldições contra os embaixadores flamengos que haviam chegado há dois dias para preparar o casamento do delfim (como eram chamados os príncipes herdeiros) com a princesa Margarida de Flandres. Falava-se mal também do chefe dos comerciantes, do cardeal de Bourbon, do meirinho do Palácio, dos sargentos, do frio, do calor, do mau tempo, do Papa dos Loucos, do bispo de Paris, dos pilares, das estátuas, desta porta fechada, daquela janela aberta, de tudo, enfim.
Bandos de estudantes espalhados pela multidão misturavam ao descontentamento geral suas caçoadas e malícias, espetando, por assim dizer, com golpes de alfinete o mau humor geral. Houve um grupo mais exaltado que, após quebrar os vidros de uma janela, sentou-se audaciosamente sobre o parapeito e dali lançava, alternadamente, olhares e gozações para a multidão do salão e da praça.
Por suas paródias e risos ruidosos e pelos nomes zombeteiros com os quais eles se chamavam, era fácil constatar que esses estudantes não partilhavam o cansaço do restante do público. Eles sabiam muito bem transformar o que tinham diante dos olhos em um espetáculo tão prazeroso quanto aquele pelo qual aguardavam.
Todos gritavam e se cumprimentavam e assim que o irmão do magistrado do Palácio, Gilles Lecornu, apareceu, explodiram gracejos contra ele, que, suando e bufando, perdeu a calma:
- Que horror estudantes dizerem tais coisas a um burguês! No meu tempo, eles teriam sido castigados com um feixe de varas e queimados em seguida.
A alegria e a zombaria tornaram-se mais intensas. Enfim, soou meio-dia e o tumulto deu lugar ao silêncio. Todos os olhares se moveram em direção ao palco, mas ninguém surgiu sobre ele. Desta vez, era demais.
Esperou-se um, dois, três minutos, um quarto de hora e nada se passou. A plataforma continuava deserta; o teatro, mudo. No entanto, a impaciência foi seguida pela cólera. Os comentários irritados circulavam, ainda em voz baixa, é verdade. "O mistério! O mistério!", murmurava-se surdamente. As cabeças se agitavam e um clima de revolta, que ainda apenas ressoava, pairou sobre a multidão.
- Saquear! Saquear! - ouviu-se por toda parte.
Neste instante, a cortina do fundo foi levantada, dando passagem a um personagem que anunciou que iria representar o papel de Júpiter na peça:
- Assim que o eminentíssimo cardeal chegar, nós começaremos.
Mas sua voz se perdeu numa tempestade de vaias.
- Comecem o mistério, agora! - gritou o público.
A cólera popular estava prestes a explodir com violência redobrada, quando um personagem que era ninguém menos do que o autor da peça, Pierre Gringoire, tomou o lugar de Júpiter e deu-lhe ordem de começar imediatamente.
- Viva! - gritou o público.
Houve um som de palmas ensurdecedor e Júpiter entrou pela cortina, deixando para trás o salão a tremer com os aplausos. Logo, então, pôde-se admirar a peça, intitulada "A provação da Virgem", uma obra muito bonita.
O público escutava com atenção, quando, de repente, bem no meio de uma cena, a porta da plataforma reservada,que até aquele momento estava fechada, se abriu e uma voz retumbante anunciou:
- Sua Eminência, o cardeal de Bourbon.
Pobre Gringoire! De tudo o que ele poderia temer, aconteceu o pior. A entrada de Sua Eminência pôs o auditório de pernas para o ar. Todas as cabeças se voltaram para a plataforma e nada mais se pôde ouvir.
- O cardeal! O cardeal! - repetiram todas as bocas.
Sua Eminência, então, parou um momento na entrada da plataforma e, enquanto olhava indiferente para o auditório, o tumulto aumentou. Todos queriam vê-lo melhor, mas só conseguiam aqueles que podiam colocar a cabeça sobre o ombro do vizinho.
O cardeal entrou, saudou o público e se dirigiu a passos lentos à sua poltrona de veludo vermelho, com um ar de estar pensando em outra coisa. Seu cortejo de bispos e abades apareceu em seguida, não sem um aumento ainda maior do tumulto e da curiosidade.
Após o cardeal de Bourbon, chegaram, dois a dois, os enviados do Duque da Áustria. Não era mais possível pensar no espetáculo teatral e o pobre Gringoire ficou agitado, sem poder, imediatamente, juntar-se aos comediantes e reconduzir a atenção ao que acontecia em cena.
Entre os recém-chegados destacavam-se os burgueses flamengos, ao mesmo tempo dignos e severos, de famílias parecidas com aquelas a quem o pintor Rembrandt retratou com tanto talento no quadro Ronda noturna. Estavam ali, entre outras pessoas, Guillaume Rym e Jacques Coppenole. Este último, um burguês que não negava a origem humilde - era fabricante de meias -, chamou a atenção de todos desde que se pôs a falar com familiaridade a um mendigo chamado Clopin Trouillefou. O pedinte subira num galho ao lado do palco, sem se preocupar com o protocolo, de onde gritava várias vezes:
- Caridade, pelo amor de Deus.
Tudo ia de mal a pior, porque Jacques Coppenole, enquanto os atores retomavam seus papéis, levantou-se de repente e se pôs a discursar para o público:
- Senhores burgueses e fidalgos de Paris, o que fazemos aqui? Vejo sobre este palco atores fingindo que querem brigar. Não sei se é a isto que os senhores dão o nome de mistério, mas não é divertido. Eles brigam com palavras e mais nada. Já faz um quarto de hora que aguardo o primeiro golpe e nada acontece. São covardes que se arranham apenas com injúrias. Deviam fazer vir lutadores de Londres ou de Roterdã e, no momento certo, os senhores teriam socos que ouviríamos da praça. Não está acontecendo aquilo que me haviam dito que ocorreria. Prometeram-me uma Festa dos Loucos, com eleição do papa. Nós também temos nosso Papa dos Loucos em Gand e nisso não estamos atrás, mas vejam como fazemos. Reunimo-nos em multidão, como aqui. Depois, cada um mostra a cabeça através de um buraco e faz uma careta aos outros. Aquele que fizer a careta mais feia é aclamado por todos e eleito papa. É muito divertido. Os senhores desejam que nós façamos a eleição de seu papa da mesma forma que em meu país?
Gringoire quis protestar, mas a indignação e a ira lhe tiraram a voz. Aliás, a proposta do fabricante de meias foi acolhida com tal entusiasmo pelos burgueses, lisonjeados por terem sido tratados como fidalgos que qualquer resistência seria inútil.
Num piscar de olhos, estava tudo pronto para a execução da idéia de Coppenole. Burgueses e estudantes colocaram mãos à obra: a pequena capela situada diante da mesa de mármore foi escolhida para ser o teatro de caretas e uma vidraça quebrada do vitral sobre a porta deixou livre um círculo de pedra através do qual se decidiu que os participantes enfiariam a cabeça. Para isso, era necessário apenas subir em dois tonéis, empoleirados um sobre o outro, que haviam sido trazidos não se sabe de onde.
Combinou-se que cada candidato, homem ou mulher (porque poderíamos ter uma papisa), deveria cobrir o rosto, permanecendo escondido dentro da capela até o momento de fazer sua aparição. Em menos de um instante, o lugar estava cheio de competidores, atrás dos quais a porta foi fechada.
As caretas começaram. A primeira figura que surgiu na janela, com os olhos revirados, a boca escancarada e a testa enrugada fez com que explodisse uma gargalhada interminável. Uma segunda e uma terceira careta se sucederam, depois outra e mais outra e sempre os risos e as alegres batidas de pés no chão aumentavam.
De repente, uma tempestade de aplausos, misturada a uma aclamação prodigiosa, aconteceu. O Papa dos Loucos havia sido eleito.
- Viva! Viva! - gritaram as pessoas por toda parte.
Era uma careta maravilhosa que irradiava no buraco do vitral. Após todas as figuras extravagantes que se sucederam na janela, nenhuma outra poderia conseguir os votos além da careta sublime que acabara de deslumbrar o público. O próprio Coppenole aplaudiu.
A aclamação foi unânime. Uma multidão entrou na capela e fez com que saísse em triunfo o afortunado Papa dos Loucos, mas foi neste momento que a surpresa e a admiração atingiram o ápice. A careta era o próprio rosto, ou melhor, a pessoa toda era uma horrível careta: uma cabeça grande ouriçada de cabelos ruivos; entre os dois ombros, uma Corcunda enorme da qual o contragolpe se fazia sentir na parte frontal de seu corpo; um sistema de coxas e de pernas tão estranhamente tortas que se tocavam apenas por meio dos joelhos; pés grandes, mãos monstruosas e, apesar da deformidade, uma aparência formidável de vigor, agilidade e coragem. Poderíamos dizer que se tratava de um gigante que se partira, tendo sido mal colado. Assim era o Papa que os Loucos acabavam de escolher.
- É Quasímodo, o sineiro! - gritaram. - É Quasímodo, o Corcunda de Notre-Dame! Quasímodo, o caolho! Quasímodo, o aleijado! Viva!
Estamos vendo que o infeliz tinha sobrenomes de sobra para escolher. Quasímodo, objeto do tumulto, mantinha-se na porta da capela, de pé, triste e sério, e se deixava admirar.
Um estudante, Robin Poussepain, veio rir diante de seu nariz, e muito perto. O Corcunda limitou-se a levantá-lo pela cintura e a atirá-lo a dez passos de distância através da multidão, sem dizer uma só palavra.
Todos os mendigos e ladrões aos quais se juntaram os estudantes foram em procissão buscar no armário do tribunal a tiara de papel e a patética e grosseira veste de pele de ovelha do Papa dos Loucos. Quasímodo se deixou vestir sem pestanejar, com uma certa docilidade orgulhosa. Em seguida, colocaram-no sentado numa cadeira colorida que doze oficiais da Confraria dos Loucos levantaram em seus ombros. Então, uma alegria amarga e arrogante floresceu na face carrancuda daquela espécie de monstro mitológico, quando ele viu sob seus pés disformes todas as cabeças de belos homens, eretos e bem feitos.
Depois, a procissão estridente se colocou a caminho para fazer, de acordo com o costume, o passeio pelo interior das galerias do Palácio, antes de desfilar pelas ruas e cruzamentos. A multidão saiu à rua e neste momento outros gritos ressoaram:
- Esmeralda! Esmeralda! Ela está Iá! Ela está Iá!
- O que isto quer dizer: Esmeralda? - perguntou o único espectador da peça, Pierre Gringoire, desolado.
É preciso dizer que durante a eleição, a encenação do mistério continuou, pois os atores e Gringoire não interromperam a obra. Um brilho de esperança ressurgiu quando o autor viu o Papa dos Loucos e seu cortejo ensurdecedor saírem ruidosamente do salão, mas, infelizmente, aquela multidão era o público e, num piscar de olhos, o grande salão ficou vazio...
Era o último golpe e Gringoire recebeu-o com resignação.
- Azar de quem não assistiu a uma obra sublime! - disse aos atores. - Se eu for pago, acerto as contas com vocês.

O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 2


CAPÍTULO 2
Esmeralda


Quando Gringoire saiu do Palácio, as ruas já estavam às escuras e a noite o agradou. Ele ansiava caminhar para meditar à vontade sobre o fracasso da representação teatral. Além disso, não ousava voltar para casa, pois contava com o pagamento que receberia pela peça para saldar os seis meses de aluguel que devia ao proprietário do imóvel. Depois de refletir por um momento, lembrou-se de ter visto na semana anterior, na porta de um conselheiro do Parlamento, um banco de pedra. Na ocasião, ele disse para si mesmo que aquela pedra seria, oportunamente, um excelente travesseiro para um mendigo ou para um poeta.
Ele agradeceu à Providência por lhe ter enviado esta boa idéia, mas, como se preparava para cruzar a Praça do Palácio, viu a procissão do Papa dos Loucos atravessar seu caminho novamente, com altos brados e um grande clarão de tochas. Esta visão reavivou as feridas de seu amor próprio e ele partiu. No amargor de sua desventura dramática, tudo que lembrasse a festa do dia o exasperava e fazia sangrar sua ferida.
Gringoire quis atravessar a ponte Sant-Michel, onde crianças corriam aqui e ali com rojões. Mais adiante, a multidão admirava bandeiras sobre as quais o pintor Jehan Fourbault havia desenhado o retrato do rei, do delfim e de outros personagens importantes. "Feliz pintor Jehan Fourbault!", pensou Gringoire com um grande suspiro e deu as costas às bandeirolas.
Ele encontrou uma rua diante de si e a achou tão escura e tão abandonada que acreditou que ali poderia escapar de todas as influências da festa. Caminhou por ela e chegou à margem do rio Sena. Depois de andar ao longo do grande muro dos jardins naquela praia não calçada onde a lama atingia o tornozelo, ele chegou a um ponto de onde observou durante algum tempo uma pequena ilha.
A ilhota na sombra parecia uma massa negra e nela percebia-se o reflexo de uma pequena luz que emanava da cabana do barqueiro solitário que lá se abrigava durante a noite.
"Feliz barqueiro!", pensou Gringoire, "Você não busca a glória. De que lhe importam os reis que se casam e as duquesas da Borgonha? Você não conhece outras margaridas além das que planta em seu gramado. Já eu, poeta, sou vaiado e tremo de frio. A sola de meus sapatos é tão transparente que poderia servir de vidro para sua lanterna. Obrigado! Sua cabana descansa minha vista e me faz esquecer de Paris!"
O poeta despertou deste devaneio por um grande fogo de artifício duplo que partiu repentinamente da cabana abençoada. Era o barqueiro que, à sua maneira, participava das festividades do dia, soltando um rojão.
O rojão arrepiou a pele de Gringoire.
- Maldita festa - gritou ele - que irá me perseguir por toda parte! Ah, meu Deus! Até nesta pequena ilha quase deserta!
Em seguida, ele observou o rio Sena a seus pés e uma terrível sensação invadiu-lhe o corpo:
- Com que boa vontade eu me afogaria se a água não estivesse tão fria!
Então, surgiu nele uma resolução desesperada. Já que não podia escapar do Papa dos Loucos, das bandeiras do pintor Jehan Fourbault e dos fogos de artifício, que mergulhasse bravamente no próprio coração da festa e fosse para a Praça da Greve!
"Pode ser", pensou, "que eu consiga uma centelha de fogueira para me aquecer e até mesmo jante por lá."
Quando Pierre Gringoire chegou à Praça da Greve, congelava de frio. Ele havia evitado a multidão e as bandeirolas de Jehan Fourbault, mas as rodas de todos os moinhos pelos quais passou o haviam molhado, encharcando sua blusa.
Ele apressou-se em se aproximar da fogueira que queimava magnificamente no meio da praça, mas uma multidão considerável estava à sua volta. Examinando mais de perto, percebeu que o círculo era grande demais para que todos desejassem se aquecer no fogo e que este grupo de espectadores não fora atraído unicamente pela beleza dos galhos que queimavam.
Num vasto espaço deixado livre entre a multidão e a fogueira, uma moça dançava. Ela não era grande, mas parecia, de tanto que sua pequena figura se lançava aos movimentos. Era morena, mas percebia-se que durante o dia sua pele devia ter o reflexo dourado das mulheres espanholas ou italianas. Seus pés pequenos dançavam à vontade nos sapatos graciosos. Ela girava e se contorcia sobre um velho tapete persa e, cada vez que a face radiante passava diante de alguém, seus grandes olhos negros atiravam um raio.
Em torno dela, concentravam-se olhares fixos e bocas entreabertas. Enquanto ela dançava assim ao som do tambor, os braços se elevavam acima da cabeça pequena, frágil e viva como uma vespa, com seu corpete de ouro, seu vestido colorido, seus cabelos negros, seus olhos de chamas. Com efeito, ela era uma cigana!
"Na verdade", pensou Gringoire, "é uma deusa".
Neste momento, uma das tranças dos cabelos da "divindade" desprendeu-se e um pedaço de cobre amarelo rolou por terra.
- Oh, não! - ele exclamou. - É uma cigana!
Toda ilusão havia desaparecido, pois ela de fato era uma cigana.
Entre os rostos que o fogo tingia de escarlate, havia um que parecia absorvido pela contemplação da dançarina mais que todos os outros. Era severo, calmo e sinistro. Este homem, cujos trajes estavam escondidos pela multidão que o cercava, não parecia ter mais que trinta e cinco anos e, no entanto, era careca. As têmporas mal sustentavam alguns raros tufos de cabelo, já brancos. A testa larga e alta começava a se encher de rugas, mas nos olhos fundos brilhava uma juventude extraordinária. Ele os mantinha sem cessar presos à cigana e, enquanto a moça de dezesseis anos dançava e esvoaçava para o prazer de todos, seus devaneios tornavam-se cada vez mais sombrios.
A jovem, sem fôlego, enfim parou e o povo a aplaudiu.
- Djali - disse a cigana.
Gringoire viu, então, chegar uma pequena cabra branca, alegre e lustrosa, com chifres dourados, pés dourados e uma coleira dourada.
- Djali - disse a dançarina -, é sua vez. Sentando-se, ela apresentou graciosamente seu tambor à cabra.
- Djali - continuou -, em que mês nós estamos?
A cabra levantou a pata dianteira e bateu uma única vez no tambor. Realmente, era o primeiro mês do ano e a multidão aplaudiu.
- Djali - prosseguiu a cigana -, em que dia do mês estamos?
O animal levantou o pé dourado e bateu seis vezes no tambor.
- Djali - continuou a cigana, sempre com um novo truque ao bater o tambor -, que horas são?
A cabra bateu sete vezes. No mesmo momento, o relógio da Casa dos Pilares soou sete horas e a multidão maravilhou-se.
- Isto é bruxaria - disse a voz sinistra do homem careca que não tirava os olhos da cigana, no meio da multidão.
A moça recuou e se virou.
- Sacrilégio! Profanação! - recomeçou a voz. A cigana se virou mais uma vez.
- Ah, só podia ser este homem repulsivo!
Em seguida, esticando o lábio inferior para além do lábio superior, ela fez um pequeno beiço com o qual parecia estar familiarizada, deu uma pirueta sobre o calcanhar e se pôs a recolher em seu tambor as doações da multidão.
De repente, passou diante de Gringoire. Este colocou a mão tão irrefletidamente no bolso que ela parou.
- Droga! - disse o poeta, encontrando no fundo do bolso a realidade, ou seja, o vazio.
No entanto, a moça permaneceu ali, estendendo-lhe o tambor e esperando. Gringoire suava, e, felizmente, um acontecimento inesperado veio em seu socorro.
- Vá embora, gafanhoto do Egito! - disse uma voz ácida que partiu do canto mais escuro da praça.
A moça virou-se, amedrontada. Não era mais a voz do homem e, sim, uma voz feminina, que repetiu:
- Suma daqui, gafanhoto do Egito!
- É a enclausurada da Tour-Roland! - gritaram algumas crianças, em tom de gozação. - Por que será que ela está nervosa? Será que ainda não jantou?
Gringoire aproveitou-se do problema da dançarina para desaparecer. O clamor das crianças lembrou-o de que ele também não havia jantado. Coisa inoportuna é dormir sem comer. Menos agradável ainda é não jantar e não saber onde dormir. O poeta estava nesta situação: sem dinheiro, sem pão, sem lar.
Pensava ele sobre esta triste condição, quando um canto cheio de doçura, arrancou-o de sua melancolia: era a jovem egípcia novamente, que desta vez cantava. A voz era como sua beleza: fascinante, pura, etérea.
As palavras que ela cantava eram de uma língua desconhecida por Gringoire e ele as escutava encantado. Depois de várias horas, este era o primeiro momento em que ele não sofria, pena que tenha durado tão pouco! A mesma voz de mulher que havia interrompido a dança da cigana também veio interromper-lhe o canto.
- Quer se calar, cigarra do mal! - ela gritou novamente do canto escuro da praça.
A pobre "cigarra" parou de súbito e Gringoire tapou os ouvidos.
- Ah! - disse ele. - Maldita serra sem corte que interrompe este canto doce.
Os outros espectadores murmuraram:
- Cale-se, velha estúpida!
E ela poderia ter se arrependido das agressões contra a cigana, se eles não se distraíssem nesse exato momento pela passagem do Papa dos Loucos, que, após ter percorrido muitas ruas e cruzamentos, desembocava na Praça da Greve com todas as suas tochas.
A procissão que partiu do Palácio organizou-se ao longo do caminho, recrutando todos os ladrões, vadios e mendigos disponíveis de Paris - o que lhe dava um aspecto bizarro.
No centro da multidão, os grãos-oficiais da confraria dos Loucos carregavam nos ombros uma cadeira cheia de velas no meio da qual resplandecia sentado, com todos os aparatos, o novo Papa dos Loucos: o tocador dos sinos de Notre-Dame, Quasímodo, o Corcunda.
É difícil dar uma idéia do orgulho que Quasímodo sentia. Era a primeira alegria de amor-próprio que ele jamais havia experimentado. Conhecia o sineiro até então apenas o desdém por sua condição, a aversão por sua pessoa. Como era totalmente surdo, saboreava as aclamações da multidão que ele odiava. Que importava se seus adoradores fossem um bando de loucos, ladrões e mendigos! Era ainda uma multidão e ele, o soberano. A patética figura levava a sério todos os aplausos irônicos e todas as deferências ridículas que se misturavam a um pouco de medo, porque o Corcunda era robusto.
Portanto, foi com certa apreensão que todos viram de repente um homem lançar-se no meio da multidão e arrancar das mãos de Quasímodo o bastão de madeira dourada, símbolo de seu delirante papado.
Este homem, vestido com o hábito eclesiástico, era o sujeito calvo que assistira antes à dança da cigana. No momento em que saiu da multidão, Gringoire, que não o havia visto até então, reconheceu-o.
- Espere! - disse, com um grito de surpresa. - É dom Cláudio Frollo, o arcebispo. O que ele quer desse horrível caolho? Vai acabar devorado.
Um grito de terror se elevou. Quasímodo pulou da cadeira e as mulheres viraram o rosto para não vê-lo fazer em pedaços o arcebispo.
Mas ele saltou até o padre e se pôs de joelhos. O religioso arrancou-lhe a tiara, quebrou o bastão e rasgou suas vestes de papa. Quasímodo, ajoelhado, abaixou a cabeça. Em seguida, estabeleceu-se entre eles um estranho diálogo de sinais e gestos, porque nem um nem outro falava: o padre, de pé, irritado, ameaçador, categórico; Quasímodo, curvado, humilde, suplicante. No entanto, o Corcunda poderia esmagá-lo com as mãos.
Enfim, o arcebispo, sacudindo o ombro de Quasímodo, fez um sinal para que ele se levantasse e o seguisse. A Confraria dos Loucos, passado o susto, quis defender o papa destronado, mas Quasímodo se colocou na frente do padre e encarou os atacantes com o ranger de dentes de um tigre zangado.
O padre assumiu um ar sombrio, fez um sinal para Quasímodo e se retirou em silêncio. O Corcunda caminhava diante dele, afastando a multidão à sua passagem. Quando eles acabaram de atravessar a praça, o bando de curiosos e de vadios quis acompanhá-los, porém Quasímodo se colocou na retaguarda e seguiu o mestre, urrando como uma fera selvagem.
Os dois entraram em uma rua estreita e escura, onde ninguém ousaria se arriscar.
- Veja só que maravilha! - disse Gringoire. - Mas onde irei jantar?

O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 3

CAPÍTULO 3
O jarro quebrado

Gringoire, pelo sim pelo não, pôs-se a seguir a cigana. Ele a viu entrar, com sua cabra, na rua de La Coutellerie e caminhava, pensativo, atrás da moça, que apertava o passo vendo os burgueses fecharem suas tabernas, o único tipo de comércio aberto naquele dia. As ruas estavam escuras e desertas. O toque de recolher soara há muito tempo e apenas alguns raros indivíduos restavam. Gringoire entrou, seguindo a cigana, no labirinto de ruelas, cruzamentos e becos sem saída que cercam o antigo Cemitério dos Santos Inocentes.
Após alguns instantes, ela percebeu que estava sendo seguida. Por várias vezes, ela se virou para ele com inquietude e até parou uma hora, aproveitando um raio de luz que escapava de uma taberna entreaberta, para olhá-lo fixamente. Em seguida, Gringoire a viu fazer o beiço que ele já tinha notado e ela o ignorou.
A certa altura, ele a perdeu de vista e minutos depois ouviu um grito de pavor. O poeta, então, apertou o passo.
Um pequeno lampião a gás que estava aceso na esquina permitiu distinguir a cigana debatendo-se nos braços de dois homens que tentavam abafar seus gritos, enquanto a pobre cabra balia de medo.
- Larguem a pobre moça! - gritou Gringoire, avançando bravamente.
Um dos homens que segurava a cigana virou-se em sua direção: era o rosto formidável de Quasímodo. O poeta não fugiu, mas não deu nem mais um passo. O Corcunda aproximou-se dele, deixou-o de quatro sobre a calçada com um golpe dado com as costas da mão e mergulhou na escuridão, levando a moça dobrada sobre um de seus ombros como um cachecol. O companheiro o seguia e a pobre cabra corria atrás dos dois com seu balido melancólico.
- Assassino! Assassino! - gritava ela.
- Alto lá, miseráveis, entreguem-me esta mulher - disse de repente, com uma voz de trovão, um cavaleiro que surgiu bruscamente do cruzamento vizinho.
Era o capitão dos arqueiros da ordem do rei, armado dos pés à cabeça e com a espada em punho. Ele arrancou a cigana dos braços de Quasímodo e colocou-a atravessada em seu cavalo. No momento em que o Corcunda, passada a surpresa, avançou sobre ele para recuperar a presa, quinze ou dezesseis arqueiros, que seguiam de perto o capitão, apareceram de armas na mão.
O sineiro foi dominado e amarrado. Ele rugia, espumava e mordia e se o dia estivesse claro, sem dúvida, apenas seu rosto, mais horrendo ainda devido à ira, teria feito fugir toda a esquadra. Mas, à noite, ele não podia contar com sua arma mais formidável: a feiúra.
O homem que o acompanhava desapareceu durante a luta. A cigana se ajeitou graciosamente sobre a sela do oficial e o observou fixamente durante alguns segundos, como que deleitada por sua boa aparência e pelo socorro que ele acabara de lhe prestar. Em seguida, foi a primeira a quebrar o silêncio, falando docemente:
- Como o senhor se chama, senhor policial?
- Capitão Febo de Châteaupers, a seu serviço! - respondeu ele, endireitando-se.
Enquanto o capitão retorcia seu bigode, ela se deixou escorregar do cavalo e fugiu. Um raio não teria desaparecido tão rápido.
Gringoire, aturdido pela queda, permaneceu na calçada. Pouco a pouco, recobrou os sentidos, e rapidamente uma sensação muito viva de frio acordou-o completamente. Ele havia caído no córrego.
- Maldito Corcunda! - resmungou entre os dentes.
Ele se levantou e retomou seu caminho. Após um momento, percebeu um brilho avermelhado no final de uma ruela estreita e longa.
- Deus seja louvado! Ali está sem nenhuma dúvida o calor de uma fogueira para que eu possa me secar e me aquecer.
Ele apenas havia dado alguns passos na longa ruela sem calçamento e cada vez mais enlameada, quando percebeu algo bastante singular. Ela não estava deserta. Aqui e ali, rastejavam massas humanas disformes, todas se dirigindo em direção à luz que vacilava no final da rua.
Gringoire continuou a avançar e logo se juntou a uma larva que demorava mais preguiçosamente a seguir as outras. Aproximando-se, ele percebeu que era apenas um aleijado que saltitava sobre as mãos e prosseguiu. Chegou perto de outra massa ambulante e a examinou. Era um paralítico, ao mesmo tempo coxo e sem um braço, tão coxo e tão sem braço que o sistema complicado de muletas que o sustentava dava-lhe o aspecto de um andaime que caminhava.
Ele quis apressar o passo, mas pela terceira vez algo barrou seu caminho. Esta coisa, ou antes, esta pessoa era um cego, um pequeno cego que tateava no espaço, rebocado por um grande cachorro.
Gringoire continuou seu caminho, mas o cego apressou o passo ao mesmo tempo. Tanto o paralítico quanto o aleijado avançaram com pressa e um grande ruído de moedas e de muletas foi ouvido sobre a calçada.
O poeta pôs-se a fugir e todos o seguiram. À medida que ele corria, pernetas, cegos e coxos multiplicavam-se ao redor. Manetas, zarolhos e leprosos também saíam das ruas adjacentes, das janelas dos porões, das adegas, urrando, mugindo, uivando, todos coxeando, mancando e pisando na lama como lesmas após a chuva.
Gringoire, sempre à frente dos três perseguidores, tentou, amedrontado, enfiar-se no meio dos outros. Quis voltar, mas era tarde demais. Aquela legião o cercou, mas ele continuou, empurrado ao mesmo tempo por esta onda, pelo medo e por uma vertigem que transformava tudo aquilo numa espécie de sonho horrível.
Por fim, atingiu a extremidade da rua, que terminava numa praça imensa, onde mil luzes dispersas cintilavam no nevoeiro confuso da noite. Gringoire fugiu para Iá, esperando escapar pela velocidade de suas pernas dos três fracos espectros que fixavam os olhos nele. De repente, o paralítico atirou longe as muletas e passou a persegui-lo com as duas melhores pernas que jamais haviam dado um passo sobre as calçadas de Paris, enquanto o coxo endireitou-se sobre os pés e o cego o encarava com olhos que resplandeciam.
- Onde estou? - perguntou o poeta, aterrorizado.
- No Pátio dos Milagres - respondeu um quarto espectro que o alcançara.
Gringoire olhou ao redor de si. Estava realmente no temível Pátio dos Milagres, onde nunca um homem honesto havia penetrado a tal hora. Um círculo mágico no qual os soldados do rei que se arriscavam a entrar eram feitos em migalhas.
Tratava-se de uma praça vasta, irregular e mal pavimentada, como todas as praças de Paris. Havia fogueiras ao redor das quais se juntavam grupos estranhos aqui e ali. Escutavam-se risos agudos, choros de crianças, vozes de mulheres.
Gringoire, cada vez mais amedrontado, dominado pelos três mendigos, ensurdecido pela multidão que uivava em torno dele, percebeu que havia caído em desgraça. Neste momento, ouviu-se um grito:
- Vamos levá-lo ao rei! Ao rei!
- Virgem santíssima! - murmurou Gringoire. - O rei deste lugar deve ser um sujeito terrível!
- Ao rei! Ao rei!
Enquanto era levado, todos queriam pôr as garras sobre ele, mas os três mendigos não o soltavam, arrancando-o dos outros, com urros:
- Ele é nosso!
O casaco já gasto do poeta deu seu último suspiro nesta luta. Ao fim de alguns passos, seu senso de realidade retornou e ele começou a perceber a atmosfera do lugar. Examinando as coisas com mais sangue frio, observou: o Pátio dos Milagres era apenas um cabaré, um cabaré de bandidos.
Ao redor de uma fogueira que queimava sobre uma grande pedra redonda, havia algumas mesas arrumadas ao acaso. Sobre elas, brilhavam algumas garrafas cheias de vinho e em torno destas garrafas agrupavam-se rostos avermelhados pelo fogo e pela bebida. Risos estouravam por toda a parte, brigas aconteciam.
Sobre um tonel perto do fogo, estava sentado um mendigo. Era o rei acomodado sobre seu trono. Os três conduziram Gringoire diante dele e o soberano, do alto do barril, dirigiu-lhe a palavra.
Gringoire teve um sobressalto. A voz lembrava aquela ouvida de manhã: "Caridade, pelo amor de Deus!". O rei dos mendigos era, com efeito, Clopin Trouillefou.
Coberto de insígnias reais, ele não tinha um trapo a mais nem a menos. Na mão carregava um chicote com correias de couro branco. Sobre a cabeça, portava um tipo de chapéu circular, fechado pela parte superior. Gringoire, sem saber por que, recobrou a esperança ao reconhecer nessa figura o mendigo do salão.
- Senhor... - balbuciou - Alteza... Amo... Como devo chamá-lo? - perguntou por fim.
- Alteza, majestade ou camarada... Chame-me como quiser, mas apresse-se. O que tem a dizer em sua defesa?
"Minha defesa?", pensou Gringoire, "Isto não me agrada". E continuou gaguejando:
- Fui eu quem esta manhã...
- Somos seus juizes! - interrompeu Clopin. - Você entrou em nosso reino, violou nossa cidade. Deve ser punido, a menos que seja um ladrão, mendigo ou vagabundo. Pratica alguma dessas profissões, hein? Justifique-se. Apresente suas qualidades.
- Sou o autor da peça que foi encenada esta manhã.
- Já é suficiente - retomou Clopin, sem deixá-lo terminar. - Será enforcado!
Gringoire tentou um último recurso.
- Perdão, alteza! Não me condene sem me ouvir...
- Não vejo por que não enforcá-lo! Isto parece repugná-lo? - disse Clopin, acariciando o queixo. - Mas, no fim das contas, não lhe queremos mal. Há somente um meio para tirá-lo desta situação: quer ser um dos nossos?
Pode-se julgar o efeito que esta proposta teve sobre Gringoire, que via a vida lhe escapar e agarrou a oportunidade energicamente.
- Quero, certamente! - disse.
- Consente em se juntar a nós? Saiba - continuou Clopin - que você não irá escapar da forca apenas por isso. Somente será enforcado mais tarde, com mais cerimônia, com as despesas pagas pela boa cidade de Paris, numa bela forca de pedra, por pessoas decentes. É um belo consolo. Você ainda deseja ser um dos nossos?
- Sem dúvida - respondeu Gringoire.
- Não basta querê-lo - retomou Clopin. - A boa vontade não põe uma cebola a mais na sopa. É preciso que você mostre que serve para alguma coisa, por isso você irá passar pela prova do manequim.
- Passo - disse Gringoire. - Farei qualquer coisa que lhe agrade.
O rei dos mendigos fez um sinal e uma forca foi trazida.
"Até onde querem ir?", pensou Gringoire, com alguma apreensão.
No mesmo instante, um barulho de sinos acabou com sua ansiedade. Os malfeitores traziam um boneco suspenso pelo pescoço por uma corda, uma espécie de espantalho, carregado de sinetas e sininhos.
Clopin, apontando uma velha escadinha vacilante colocada abaixo do manequim, disse para Gringoire:
- Suba.
- Vou quebrar o pescoço. Esta escada balança.
- Suba! - repetiu Clopin.
Gringoire subiu a escada e conseguiu, não sem algumas oscilações da cabeça e dos braços, encontrar o centro de gravidade.
- Agora - prosseguiu o rei -, gire seu pé direito em volta da perna esquerda e erga-se sobre a ponta do pé esquerdo.
- Sua Alteza deseja que eu quebre algum membro? Clopin, meneando a cabeça, reclamou:
- Silêncio, meu amigo, você fala muito! Em duas palavras, eis a prova: você vai se equilibrar sobre a ponta do pé, atingir o bolso do manequim, remexer dentro dele e tirar uma bolsa que está lá dentro. Se você conseguir fazer tudo isso sem que se escute o ruído de nenhuma sineta, tudo bem, será um dos nossos. Teremos apenas que cobri-lo de pancadas durante oito dias.
- Vou tomar cuidado - disse Gringoire. - E se faço soar as sinetas?
- Então, será enforcado. Compreende?
- Não compreendo de forma alguma - respondeu Gringoire. - Qual é a vantagem? Enforcado, num caso; coberto de pancadas, no outro.
- Vamos, apresse-se! - disse o rei, batendo o pé sobre o tonei, que ressoou como um grande tambor. - Roube o dinheiro do manequim e isso acaba logo. Aviso uma última vez: se eu ouvir o som de uma sineta sequer, a corda sai do pescoço do espantalho diretamente para o seu!
Gringoire tentou ainda ponderar:
- E se soprar um golpe do vento?
- Você será enforcado - foi a resposta.
Vendo que não havia subterfúgio possível, Gringoire ajeitou-se na ponta dos pés e estendeu o braço. No momento em que tocava o manequim, a escada, com o peso de seu corpo, se moveu. O poeta tentou, involuntariamente, apoiar-se sobre o boneco, mas perdeu o equilíbrio e caiu pesadamente sobre a terra, no meio do barulho de mil sinos.
- Maldição! - gritou, enquanto caía.
Por alguns instantes, ele permaneceu no chão como morto, com o rosto virado para a terra. Quando se levantou, o espantalho já havia sido retirado da corda para que ele pudesse tomar seu lugar. Forçaram-no, então, a subir a escada. Clopin se aproximou dele, passou a corda em volta de seu pescoço e disse, batendo-lhe no ombro:
- Adeus, amigo! Você não pode mais escapar agora...
No entanto, o rei dos mendigos parou, como se tivesse uma idéia súbita.
- Um momento! - disse. - Ia me esquecendo. Normalmente não enforcamos um homem antes de perguntar se uma mulher o aceita como marido. É uma lei cigana, que devemos respeitar.
Ninguém se apresentou e Clopin ia dar a ordem final para enforcar o poeta, quando gritos foram ouvidos:
- Esmeralda! Esmeralda!
Gringoire ficou arrepiado e virou na direção de onde vinha o clamor, enquanto a multidão dava passagem a uma figura deslumbrante. Era a cigana.
- Esmeralda! - disse Gringoire, estupefato pela maneira brusca com que esta palavra mágica reunia todas as lembranças do dia.
Ela aproximou-se com seu passo rápido. Djali a seguia. Gringoire, mais morto do que vivo, foi observado pela cigana em silêncio.
- Vai enforcar este homem? - disse a moça, seriamente.
- Sim, irmã - respondeu o rei -, a menos que você o aceite como marido.
- Eu aceito - disse ela, fazendo com o lábio inferior um belo beiço de desprezo.
Gringoire, neste momento, acreditou firmemente que apenas sonhava desde a manhã e que esta cena era a continuação do sonho. O laço foi desatado e o fizeram descer da escada. Logo, ele sentou-se, tamanha sua comoção. Alguém trouxe um jarro de barro, que a cigana lhe ofereceu.
- Jogue-o no chão - ela ordenou.
O jarro quebrou-se em quatro pedaços.
- Irmão - disse então o rei, pondo a mão na testa de ambos -, ela é sua mulher. Irmã, ele é seu marido. Por quatro anos. Vão.

O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 4

CAPÍTULO 4
As boas almas

Dezesseis anos antes da época em que se passa esta história, no primeiro domingo após a Páscoa, uma pequena criatura foi depositada, após a missa, na igreja de Notre-Dame, no estrado de madeira próximo ao altar. Sobre este estrado era costume colocar crianças abandonadas. Quem quisesse, poderia pegá-las ali.
O pequeno ser vivo que lá repousava, naquela manhã do ano de 1467, parecia excitar, a um grau elevado, a curiosidade do grupo que se formara, composto em grande parte por mulheres velhas. Na primeira fila, havia quatro delas, que pelo capuz cinzento deixavam adivinhar sua ligação com alguma confraria devota. Corajosas, elas quebravam alegremente o voto de silêncio que tinham sido obrigadas a fazer:
- O que é aquilo, minha irmã? - dizia uma, observando a pequena criatura que resmungava e se retorcia sobre o estrado.
- Não sei nada sobre crianças - respondeu a outra -, mas deve ser pecado olhar para esta.
- É um monstro de abominação tal criatura!
- Minha irmã não vê que este pequeno monstro tem pelo menos quatro anos.
Na verdade, a criança não era recém-nascida. Tratava-se de um pequeno volume que se remexia bastante, enrolado num saco, somente com a cabeça, bastante disforme, para fora. Nela se via uma floresta de cabelos ruivos, um só olho, a boca e os dentes. O olho chorava, a boca gritava e os dentes pareciam apenas querer morder. O todo se debatia no saco e causava grande surpresa na multidão, que aumentava incessantemente em torno dele.
Durante alguns momentos, um jovem padre ouviu as palavras do grupo. Era uma figura severa: testa larga e olhar profundo. Ele afastou silenciosamente a aglomeração de pessoas, examinou a criança e estendeu a mão para ela.
- Eu irei adotar esta criança - disse o padre.
Depois, enrolou-a com um pedaço de sua batina e a levou. A assistência seguiu-o com olhos amedrontados. Logo, ele desapareceu através da porta vermelha que levava da igreja ao claustro. Passada a surpresa inicial, uma das mulheres exclamou:
- Eu havia mesmo dito, irmãs, que este jovem sacerdote, Cláudio Frollo, é um feiticeiro!
Cláudio Frollo não era um personagem vulgar. Pertencente à pequena nobreza, desde a infância, ele havia sido destinado pelos pais à carreira eclesiástica. Era uma criança triste, solene e séria, que estudava com ardor e aprendia rapidamente. Assim, dedicou-se à teologia, à medicina e às ciências.
Aos dezoito anos, a vida parecia ter um único objetivo para o jovem rapaz: os estudos. Foi por volta desta época que o verão excessivo de 1466 fez estourar a grande peste que matou mais de quarenta mil criaturas na cidade de
Paris. Correu um rumor na universidade de que a rua Tirechappe fora especialmente devastada pela doença. O jovem aluno deslocou-se, extremamente alarmado, à casa paterna. Quando entrou, o pai e a mãe já estavam mortos, enquanto o único irmão gritava, abandonado no berço. Era tudo o que havia restado de sua família. Cláudio pegou a criança nos braços e saiu, pensativo.
Tal catástrofe causou uma crise na vida do rapaz: órfão, herdeiro e chefe de família com dezenove anos. Piedoso, encheu-se de paixão e devoção para com o irmão.
O pequeno que caía abruptamente do céu em seus braços fez dele um novo homem. A criatura frágil o comoveu até o fundo das entranhas e, pensador agudo que era, Cláudio pôs-se a refletir sobre Jean com uma misericórdia infinita. Dedicou-lhe preocupação e cuidado, como se faz a algo muito delicado. Foi mais do que um irmão para a criança, foi uma mãe.
Cláudio contratou uma ama de leite para o menino e encarou a vida com muita seriedade. A lembrança do pequeno irmão tornou-se a finalidade de seus estudos, unindo-o mais do que nunca à vocação religiosa.
No momento em que retornava da missa, sua atenção foi chamada pelo grupo de velhas que murmuravam em torno do estrado onde eram depositadas as crianças enjeitadas. Foi então que se aproximou da pequena criatura infeliz. A aflição, a deformidade, o abandono, a recordação de seu jovem irmão, tudo aquilo falava a seu coração. Uma grande piedade o comoveu e ele carregou a criança.
Ao tirá-la do saco, achou-a bem disforme, de fato. O pobrezinho tinha uma verruga sobre o olho, a cabeça enterrada nos ombros, a coluna vertebral arqueada e as pernas torcidas, mas parecia ativo e, embora fosse impossível saber em que língua ele balbuciava, seu choro prenunciava alguma força e saúde. A compaixão de Cláudio cresceu com a feiúra do menino. Ele fez votos de criar a criança pelo amor de seu irmão. Ao batizá-la, deu-lhe o nome de Quasímodo tanto em homenagem ao primeiro dia depois da Páscoa, quanto por se tratar de uma criatura incompleta, um quase ser.
Em 1482, Quasímodo, já crescido, tornara-se o sineiro da catedral de Notre-Dame graças a seu pai adotivo, Cláudio Frollo, agora arcebispo.
Com o tempo, criou-se uma relação íntima que unia o tocador de sino à igreja. Quasímodo fez de Notre-Dame seu ninho, sua casa, seu universo. Não havia profundidade que ele não tivesse penetrado, altura que não tivesse escalado. Freqüentemente,, subia pela fachada, servindo-se apenas das asperezas da construção. Graças aos saltos e às escaladas, às brincadeiras no meio dos abismos da gigantesca catedral, tornara-se, de certa maneira, macaco e cabra montanhesa.
Foi com grande esforço e paciência que Cláudio Frollo conseguiu ensinar-lhe a falar. Mas havia uma fatalidade ligada à pobre criança. Sineiro de Notre-Dame há catorze anos, os sinos haviam perfurado seus tímpanos e ele tinha ficado surdo. Sua alma mergulhou numa noite profunda. A surdez tornou-o mudo, porque, para não ser motivo do riso alheio, ele decidiu resolutamente manter um silêncio que nunca quebrava, exceto quando estava só. E ele se tornou mau. Mau na verdade porque era selvagem. E selvagem porque era feio. Sua força, extraordinariamente desenvolvida, era uma causa a mais para a maldade.
Desde os primeiros passos entre os homens, ele se sentiu isolado. Ao crescer, encontrou apenas ódio em torno de si, então, olhava a humanidade com tristeza. Notre-Dame era suficiente. A presença desse ser extraordinário fazia circular em toda a catedral um sopro de vida. Quando ele estava ali, parecia que as estátuas das galerias respiravam e até se moviam.
Havia apenas uma criatura humana que Quasímodo excluía de sua maldade e de seu ódio para com os outros, de quem ele gostava tanto (mais, talvez) quanto sua catedral: Cláudio Frollo. Simples: Cláudio Frollo o havia adotado, criado, alimentado, protegido, e, por fim, o havia feito sineiro. O reconhecimento de Quasímodo era profundo, ardente, sem limites. Embora o rosto de seu pai adotivo fosse freqüentemente sombrio e sua palavra habitualmente curta, dura e imperiosa, nunca sua gratidão recuou. O arcebispo tinha em Quasímodo o escravo mais submisso. Quando ficou surdo, ele e dom Cláudio passaram a utilizar uma língua de sinais compreendida apenas por ambos. Desta maneira, o arcebispo era o único ser humano com quem Quasímodo se comunicava. No mundo, somente a catedral de Notre-Dame e dom Cláudio Frollo se relacionavam com ele.
Em 1482, Quasímodo tinha cerca de vinte anos e dom Cláudio, cerca de trinta e seis: um tinha crescido; o outro, envelhecido.
O arcebispo não abandonou a educação de seu jovem irmão, mas com o tempo frustrou-se com esta criança que havia sido tão doce. O pequeno Jean Frollo não cresceu na direção que dom Cláudio desejara. O irmão mais novo tomou o caminho da preguiça, da ignorância e do vício. Era muito bagunceiro, o que fazia franzir a sobrancelha de dom Cláudio, embora, quando fosse engraçado e espirituoso, proporcionasse ao irmão mais velho boas risadas.
Dom Cláudio, então, desencorajado em suas afeições humanas, tinha-se lançado com maior entrega aos braços da ciência, esta irmã que não ri diante de nossos narizes. Tornou-se assim cada vez mais sábio e, ao mesmo tempo, mais rígido como padre e mais triste como homem.
Tomado por uma paixão singular por Notre-Dame, passava horas intermináveis contemplando as esculturas do portal. Ele se acomodara num pequeno quarto numa das torres que dava para a Praça da Greve, bem ao lado do campanário. Ninguém entrava ali. Via-se freqüentemente, à noite, por uma pequena janela, uma claridade vermelha, intermitente, estranha - fruto de suas experiências com a alquimia. À sombra e àquela altura, isto tinha um efeito singular.
Assim o arcebispo, apesar da austeridade de sua vida, não caíra nas graças das boas almas, que não hesitavam em acusá-lo de bruxaria.
Observava-se, além disso, que seu horror para com os vagabundos parecia aumentar havia algum tempo. Ele solicitara ao bispo uma lei que proibisse expressamente aos ciganos dançar em torno da igreja.
Assim, ele e o sineiro eram bem pouco apreciados nas proximidades da catedral. Quando Cláudio e Quasímodo saíam juntos caminhando, o empregado seguindo o mestre, nas ruas estreitas e sombrias do quarteirão de Notre-Dame, sempre alguns palavrões e algumas gozações incomodavam a passagem dos dois. Às vezes, era um menino ousado que arriscava a pele e os ossos para ter o prazer indescritível de espetar um alfinete na Corcunda de Quasímodo. Às vezes, um grupo de velhas, reunido na sombra de um pórtico, resmungava em voz alta e lançava uma irônica saudação: "Aí vai um que tem a alma igual ao corpo do outro!". Ou era um bando de alunos que os cumprimentava com algumas vaias. Geralmente, o insulto passava despercebido pelo padre e pelo sineiro. Para escutar estas coisas graciosas, Quasímodo era surdo; e dom Cláudio, bastante distraído.

O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 5


CAPÍTULO 5
A magistratura


É necessário que façamos agora a apresentação do senhor Roberto d'Estouteville, chefe da magistratura encarregado de garantir os melhores serviços da justiça ao povo de Paris.
Na manhã de 7 de janeiro de 1482, ele acordou de mau humor. De onde vinha tamanha indisposição não se poderia dizer. Era o dia seguinte a uma festa, dia de aborrecimento para todos e principalmente para o magistrado, que deveria ter sessão no Palácio Châtelet. Percebemos com freqüência que os juizes se arranjam em geral de modo que seu dia de audiência seja também seu dia de mau humor.
Contudo, os trabalhos haviam começado sem ele e os tenentes cumpriam seus afazeres, de acordo com o hábito. Desde as oito horas da manhã, algumas dezenas de burgueses, reunidos num canto escuro do auditório, assistiam com prazer ao espetáculo variado e alegre da justiça praticada pelo juiz-ouvidor do Palácio Châtelet, senhor Florian Bardebienne, tenente do magistrado.
Imagine-se em uma mesa, entre duas pilhas de processos, o ouvidor apoiado sobre os cotovelos, o pé sobre a toga de tecido marrom, o rosto de lobo em pele de cordeiro, piscando um olho e carregando com majestade a gordura das bochechas que caíam sob seu queixo.
Pequeno defeito para um ouvidor, o senhor Florian era surdo, nem por isso julgava-se menos capaz. Diante dele, acusados sucediam acusados e todos recebiam multas por delitos de pouca importância.
De repente, ouviu-se do lado dos policiais um grande barulho.
- Aí estão os sargentos! - alguém gritou. - Quem estarão trazendo?
- Certamente a presa mais gorda. Um javali, talvez!
- Espere! Espere! É o príncipe de ontem, o Papa dos Loucos, o sineiro Quasímodo!
O Corcunda surgiu, então, preso por correias e cercado por um pelotão de sargentos, observados pelo comandante em pessoa. Não havia nada em Quasímodo que pudesse justificar o uso de tal força. Ele estava sério, silencioso e tranqüilo. Apenas seu único olho lançava, de vez em quando, um olhar tão patético sobre os laços que o prendiam que as mulheres manifestavam-se apenas por risos.
Apesar disso, o senhor Florian folheou cuidadosamente o processo da queixa elaborada contra Quasímodo, que lhe foi apresentado pelo escrevente, e, tendo dado uma rápida olhada nele, pareceu refletir por um momento. Graças ao cuidado que sempre tomava no momento de conduzir um interrogatório, ele sabia de antemão o nome, as qualidades e o delito do réu, preparava réplicas previstas para as respostas previstas e conseguia escapar de todas as sinuosidades do interrogatório, sem deixar que percebessem em demasia sua surdez.
Tendo ruminado bem o caso de Quasímodo, ele inclinou a cabeça para trás e fechou os olhos até a metade, a fim de adquirir um ar majestoso e imparcial, de modo que fosse nesse momento surdo e cego.
- Seu nome?
Mas há um caso que não tinha sido previsto: um surdo interrogando outro. Quasímodo, sem ser informado da pergunta a ele dirigida, continuou a olhar o juiz fixamente e não respondeu. O juiz, que não fora informado da surdez do acusado, pensou que ele houvesse respondido, como faziam em geral todos os acusados, e prosseguiu:
- Está bem. Sua idade?
Quasímodo não respondeu a mais esta pergunta e o juiz novamente supôs a resposta:
- Agora, sua profissão?
Sempre o mesmo silêncio. O público, no entanto, começou a cochichar.
- É suficiente - retomou o ouvidor quando achou que o acusado tivesse dado a terceira resposta. - É acusado em nossa presença, primeiramente, de perturbação noturna; em segundo lugar, de violência contra a pessoa de uma jovem cigana; em terceiro, de rebelião contra as armas do rei. Faça sua defesa sobre todos esses pontos. Escrevente, tudo o que o acusado disse até agora foi escrito?
Quando esta pergunta inoportuna foi feita, uma gargalhada geral ecoou tão contagiosa que os dois surdos a perceberam. Quasímodo virou-se, levantando a Corcunda com desdém, enquanto o senhor Florian, surpreendido como ele e supondo que o riso dos espectadores tivesse sido provocado por alguma réplica irreverente do acusado, gritou em sua direção com indignação:
- Sua resposta, engraçadinho, mereceria a forca. O senhor sabe com quem está falando?
Não há nenhuma razão pela qual um surdo que fala a outro surdo se interrompa. O senhor Florian ia se lançar à alta eloqüência, quando a porta dos fundos se abriu de repente, dando passagem ao chefe da magistratura. À sua entrada, o ouvidor parou de repente.
- Senhor - disse Florian Bardebienne a Roberto d'Estouteville, que acabara de entrar -, peço a penalidade que lhe agradar contra o acusado presente, por violação grave da lei.
Depois disso, o ouvidor sentou-se, enxugando o suor que lhe escorria da testa e que molhava as folhas do processo que tinha diante de si. O senhor d'Estouteville franziu as sobrancelhas e chamou a atenção de Quasímodo com um gesto tão imperioso que este compreendeu algo. Com severidade, o magistrado dirigiu-lhe a palavra:
- O que você fez para estar aqui, tratante?
O infeliz, supondo que o magistrado perguntava seu nome, quebrou o silêncio que mantinha habitualmente e respondeu com uma voz rouca e gutural:
- Quasímodo.
A resposta encaixava-se tão mal com a pergunta que as gargalhadas recomeçaram. O senhor Roberto gritou, vermelho de cólera:
- Está zombando de mim?
- Sineiro na catedral de Notre-Dame - respondeu Quasímodo, achando que deveria dizer ao juiz sua profissão.
- Sineiro! - repetiu o juiz-mor, que havia acordado naquela manhã bem mal-humorado, de modo que sua fúria não tinha necessidade de ser provocada por tão estranhas respostas. - Sineiro! Farei com que lhe apliquem muitos golpes de varas nas costas, está escutando?
- Se é minha idade que quer saber - disse Quasímodo -, farei vinte anos no dia de São Martin.
Aquilo foi demais e Roberto d'Estouteville não conseguiu se conter:
- Você está zombando da corte, miserável! Sargentos, levem este palhaço ao pelourinho da Praça da Greve e apliquem nele uma surra durante uma hora. Ele irá me pagar!
O escrevente em poucos minutos redigiu o veredicto, contudo, no momento em que o senhor Florian Bardebienne lia a sentença para assiná-la, o escrivão sentiu-se comovido e teve piedade do pobre condenado. Assim, na esperança de obter alguma diminuição na pena, aproximou-se tanto quanto possível da orelha do ouvidor e disse-lhe, apontando Quasímodo:
- Este homem é surdo.
Esperava ele que tal coincidência de enfermidade despertasse o interesse do senhor Florian a favor do condenado. Mas, em primeiro lugar, já observamos que o ouvidor não se incomodava com o fato de as pessoas perceberem sua surdez. Além disso, ele era tão surdo que não compreendeu uma só palavra que o escrevente lhe disse. No entanto, quis dar a impressão de entender e respondeu:
- Ah, então é diferente. Eu não sabia disso. Neste caso, que fique uma hora a mais no pelourinho!
E assinou a sentença assim modificada.

O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 6


CAPÍTULO 6
O buraco dos ratos


Na Praça da Greve, o espetáculo não é menos interessante. Às dez horas da manhã, tudo lembra o dia seguinte da festa. A calçada está coberta de restos, fitas, panos, plumas de penachos, gotas de cera das tochas, migalhas do banquete público. Os vendedores de cidra e cerveja rolam suas barricas. Alguns transeuntes ocupados vão e vêm. Os mercadores conversam e se chamam uns aos outros diante de suas lojas. Todos tentam falar melhor e rir mais. E, no entanto, quatro sargentos a cavalo que acabam de se postar nos quatro lados do pelourinho já concentram em torno de si a atenção geral.
Se o leitor dirigir agora seu olhar para a casa de Tour-Roland, que fica na esquina do cais, poderá observar, no canto da fachada, uma estreita janela fechada por duas barras de ferro em cruz, única abertura que deixa chegar um pouco de ar e de luz do dia a uma pequena cela sem porta no andar térreo.
Tal cela era a mais famosa em Paris há mais de três séculos, desde que madame Rolande de Ia Tour-Roland, de luto por seu pai morto numa cruzada, mandou escavá-la na muralha da própria casa para ali se encerrar para sempre, mantendo de seu palácio apenas este único local cuja porta era murada. Somente uma fresta permanecia aberta, tanto no inverno como no verão. A senhorita, que doara o resto de seus bens aos pobres e a Deus, havia esperado a morte vinte anos neste túmulo, rezando dia e noite pela alma do pai, dormindo nas cinzas, sem ter nem mesmo uma pedra como travesseiro, vestida com um saco preto e vivendo apenas daquilo que a piedade dos transeuntes depositava sobre o parapeito da pequena janela. Quando morreu, deixou a cela para as mulheres que queriam se enterrar vivas num momento de grande dor ou por uma grande penitência.
A Tour-Roland nunca deixou de aceitar mulheres reclusas. Muitas delas a habitavam até a morte e o povo de Paris se habituou a chamar o local de "o buraco dos ratos". Na época em que se passa esta história, a cela da Tour-Roland estava ocupada justamente por aquela mulher que interrompeu a apresentação da cigana Esmeralda, mandando-a embora.
A história desta reclusa será ouvida por meio da conversa de três boas comadres que se dirigiam precisamente para Iá, subindo do Palácio Châtelet para a Praça da Greve, ao longo do rio.
Duas destas mulheres vestiam-se como boas burguesas de Paris, a outra tinha um ar mais provinciano. Ela segurava pela mão um menino grande que, por sua vez, carregava um bolo.
A criança se deixava arrastar e tropeçava a todo instante, talvez porque olhasse mais para o bolo do que para a calçada, e algum motivo sério o impedia de mordê-lo, já que ele se satisfazia em observá-lo com carinho. As três senhoritas, que se chamavam Mahiette, Oudarde e Gervaise, falavam todas ao mesmo tempo.
- Precisamos nos apressar, senhorita Mahiette - dizia a mais jovem das três para aquela com ar provinciano. - Tenho muito medo de chegarmos atrasadas. Disseram no Palácio Châtelet que ele seria levado imediatamente ao pelourinho.
- Ora bolas, o que você está dizendo, senhorita Oudarde? - continuou a outra parisiense. - Ele ficará duas horas no pelourinho. Temos tempo.
- Veja aquele agrupamento no final da ponte! Essas pessoas estão observando algo. - disse Mahiette.
- Na verdade - completou Gervaise -, escuto um tamborim. Acho que é a pequena Esmeralda que faz seu espetáculo com sua cabra. Vamos rápido, Mahiette, aperte o passo e arraste seu menino. Vocês vieram até aqui para conhecer as curiosidades de Paris. Ontem viram os flamengos, hoje devem ver a egípcia.
- Egípcia! - disse Mahiette, mudando abruptamente de direção e apertando com força o braço de seu filho. - Deus me guarde! Ela roubaria meu filho. Venha, Eustáquio.
Assustada, ela se pôs a correr ao longo do cais em direção à Praça da Greve, até deixar a ponte para trás. Contudo, a criança que arrastava caiu de joelhos e ela parou exausta. Logo, Oudarde e Gervaise juntaram-se a ela.
- Que história é essa de a egípcia roubar sua criança? Está aí uma fantasia bastante curiosa! - disse Gervaise.
Mahiette balançou a cabeça com um ar pensativo.
- O curioso - observou Oudarde - é que a enclausurada tem a mesma idéia a respeito da egípcia.
- Quem é essa enclausurada? - indagou Mahiette.
- É a irmã Gúdula - disse Oudarde. - A velha do buraco dos ratos.
- Como? - perguntou Mahiette. - Esta pobre mulher para quem estamos levamos o bolo?
Oudarde fez um sinal de cabeça afirmativo.
- Precisamente. Você vai vê-la daqui a pouco, através de sua pequena janela sobre a Praça da Greve. Ela pensa o mesmo que você destes vagabundos do Egito que tocam tamborim e lêem a sorte. Não se sabe de onde vem este horror às egípcias. E você, Mahiette, por que então foge assim, sem nem mesmo vê-la?
- Ah! - respondeu a outra, segurando entre as mãos a cabeça do filho. - Não quero que aconteça comigo o que aconteceu com Paquette Ia Chantefleurie.
- Aí está uma história que você vai nos contar, minha boa Mahiette - disse Gervaise segurando-lhe o braço.
- De boa vontade - respondeu Mahiette.
E ela contou a história de uma pobre mãe, chamada Paquette Ia Chantefleurie, de quem os egípcios roubaram a bela filha. Eles foram vistos nas proximidades da casa: eram morenos, tinham os cabelos muito crespos e brincos de prata em forma de anel nas orelhas. As mulheres possuíam o rosto ainda mais negro e os cabelos amarrados em rabos de cavalo. Chantefleurie mostrou-lhes a criança e pediu que eles lessem a sorte dela.
- Ela será rainha! - declarou uma egípcia.
E a mãe voltou para casa, muito orgulhosa de levar consigo uma futura rainha. No dia seguinte, aproveitando-se de um momento em que a criança dormia, ela correu a contar à vizinha que sua filha Agnes um dia seria servida à mesa por um rei. Quando retornou, encontrou a porta aberta e correu para procurar a filha na cama, mas a criança não estava mais ali. Não havia nenhum sinal da menina, a não ser um de seus belos sapatinhos. Desesperada, a pobre mãe saiu de casa, batendo a cabeça nas paredes e gritando:
- Minha menina! Quem roubou minha filha?
A rua estava deserta e ninguém pôde dizer nada. Paquette percorreu a cidade durante o dia inteiro, louca, perdida, farejando as portas e as janelas como um animal selvagem que perdeu o filhote. Sem fôlego e descabelada, parava os transeuntes e gritava:
- Minha criança, minha linda filhinha. Serei escrava daquele que devolver minha menina!
Durante sua ausência, uma vizinha viu duas egípcias entrarem escondidas nos seus aposentos com um pacote nos braços e depois saírem apressadas, segurando outro embrulho. À noite, quando retornou, a mãe ouviu um choro de criança e sorriu. Subiu as escadas como se tivesse asas e entrou. Uma coisa terrível! Em vez da bela Agnes, tão doce e tão rosada, uma espécie de pequeno monstro, medonho, cocho, zarolho e disforme, berrava assustado. Paquette fechou os olhos com horror e pensou:
"Teriam as bruxas transformado minha criança neste animal pavoroso?"
Houve quem se apressasse a levar embora a criança. O pequeno a teria deixado louca, pois era o filho monstruoso de alguma egípcia. Parecia ter cerca de quatro anos e falava uma língua que não era humana.
Paquette pegou o pequeno sapato da filha - tudo o que restara de quem mais amara na vida - levantou-se de repente e se pôs a correr, gritando:
- Ao acampamento dos egípcios! Ao acampamento dos egípcios!
Mas os ciganos haviam partido e ela não pôde persegui-los. No dia seguinte, a duas milhas de Iá, num brejo, foram encontrados os restos de uma grande fogueira e algumas roupas que pertenciam à criança.
Quando Paquette soube destas coisas horríveis, não chorou. Apenas moveu os lábios, como para falar, mas não pôde. Na manhã seguinte, seus cabelos estavam grisalhos e, dois dias depois, ela havia desaparecido.
- Que história pavorosa - disse Oudarde. - Não me surpreende mais o medo tão grande que você tem dos egípcios.
Mahiette caminhava silenciosamente.
- E alguém sabe o que aconteceu com Paquette? - perguntou Gervaise.
- Nunca se soube - acrescentou Mahiette, após uma pausa. - No entanto, há quem diga tê-la visto a caminho de Paris, andando com os pés descalços. Outros afirmam que ela se afogou.
- E o sapatinho? - perguntou Gervaise.
- Desapareceu com a mãe. - respondeu Mahiette.
- E o monstro? - disse, de repente, Oudarde.
- O cardeal o abençoou e o enviou para Paris, para ser exposto na catedral de Notre-Dame.
- E o que aconteceu com ele em Paris?
- Não sei - respondeu Mahiette.
Conversando assim, as três burguesas chegaram à Praça da Greve. Distraídas, passaram na frente da Tour-Roland sem parar e se dirigiram para o pelourinho ao redor do qual a multidão aumentava a cada momento. Provavelmente teriam esquecido o buraco dos ratos se o robusto Eustáquio não lhes recordasse abruptamente:
- Mãe, posso comer o bolo?
Tal pergunta despertou a atenção de Mahiette, que exclamou:
- Esquecemos da enclausurada! Levem-me ao buraco dos ratos para que eu possa dar a ela o bolo.
- Imediatamente! - disse Oudarde. - É uma caridade. As três mulheres retornaram e, chegando perto da Tour-Roland, Oudarde disse:
- Vou espiar pela janela. Ela me conhece um pouco e eu as avisarei quando puderem vir.
Oudarde dirigiu-se à pequena abertura da cela e no momento em que seu olhar penetrou no interior do quarto uma profunda piedade varreu-lhe o rosto. Mahiette aproximou-se em silêncio, comovida, e agora as três mulheres, porque Gervaise havia se reunido a elas, olhavam pela fresta. Suas cabeças interceptavam a fraca luz do calabouço, sem que a miserável enclausurada parecesse prestar atenção a elas.
- Não a perturbemos - disse Oudarde, solícita. Mahiette observou com ansiedade sempre crescente aquela cabeça magra, desvanecida, descabelada e seus olhos encheram-se de lágrimas.
- Ela é bem estranha - murmurou. - Como se chama? -perguntou a Oudarde.
- Nós a chamamos de irmã Gúdula.
- Já eu - continuou Mahiette - chamo-a de Paquette Ia Chantefleurie.
Então, fez um sinal para que Oudarde e Gervaise olhassem atentamente o interior da cela e identificassem o pequeno objeto que consumia toda a atenção da enclausurada. Um pequeno sapato de cetim rosa, bordado em ouro e prata, levou as três mulheres a chorarem de emoção.
Nada disso distraiu a reclusa. As mãos continuavam juntas, os lábios mudos e os olhos fixos. As três mulheres ainda não haviam proferido uma só palavra, nem mesmo em voz baixa, e, por fim, Gervaise, a mais curiosa das três, tentou fazer a enclausurada falar.
- Irmã Gúdula!
Ela repetiu o chamado, aumentando a voz a cada vez, mas a enclausurada não se moveu. Nem uma palavra, um olhar ou um suspiro. Oudarde, por sua vez, chamou-a com uma voz mais suave. O mesmo silêncio, a mesma imobilidade.
- Talvez esteja surda - disse Oudarde, suspirando.
- Talvez morta - retrucou Mahiette.
- Mãe, quero ver! - disse Eustáquio neste momento.
A voz da criança - clara, fresca, sonora - despertou a enclausurada. Um longo tremor percorreu-lhe o corpo, seus dentes rangeram e ela levantou um pouco a cabeça, exclamando:
- Que frio!
- Pobre mulher - lastimou Oudarde -, quer um pouco de fogo para se aquecer?
Paquette, balançando a cabeça em sinal de recusa, olhou Oudarde fixamente e disse:
- Água. Oudarde ponderou:
- Coma este bolo que assamos para você. Ela afastou o bolo e disse:
- Pão preto.
De repente, seus olhos brilharam e, sentando sobre os joelhos, ela estendeu a mão branca e magra para a criança que a observava surpresa:
- Levem este menino daqui! A cigana vai passar! Maldita seja a filha do Egito!
Logo após, ela caiu com a face contra o solo, golpeando com o rosto o ladrilho como se uma pedra batesse contra outra.
As três mulheres pensaram que ela havia morrido, mas a reclusa se arrastou até o canto onde estava o pequeno sapato. As amigas não ousaram olhar, somente ouviram mil beijos e mil suspiros misturados a gritos cortantes.

O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 7


CAPÍTULO 7
Uma lágrima por uma gota d’água


Enquanto isso, um grande número de espectadores se reunia na Praça da Greve para assistir ao castigo de Quasímodo. Esta multidão não manifestava impaciência. Antes, divertia-se em observar o pelourinho, uma espécie de monumento extremamente simples composto por um cubo oco de alvenaria de cerca de três metros de altura com uma escada de pedra bruta que levava à plataforma superior, sobre a qual se via uma roda horizontal de carvalho. A ela o condenado era amarrado de joelhos e com os braços atrás das costas. A roda girava graças a uma roldana escondida dentro da construção, assim o rosto do réu era mostrado sucessivamente a todos os pontos da praça. A isto se costumava chamar "girar um criminoso".
O condenado finalmente chegou, amarrado a uma carroça, e quando foi içado sobre a plataforma pôde ser visto de todos os pontos da praça. Preso à roda, uma grande vaia, misturada com risos e aplausos, estourou. Quasímodo havia sido reconhecido.
Era realmente ele, estranhamente de volta: preso ao pelourinho na mesma praça onde, na véspera, havia sido saudado e aclamado Papa dos Loucos!
Logo, Michel Noiret, o arauto-mor do rei, pediu silêncio e proclamou a sentença, de acordo com a determinação e a ordem do prefeito. Em seguida, ele se enfiou atrás da carroça com outras pessoas.
Quasímodo, impassível, sequer piscou. Qualquer tipo de resistência era impossível para ele, devido às correntes e correias que o prendiam. Ele foi carregado e amarrado, sem reagir. Não era possível perceber qualquer expressão em sua fisionomia, apenas o pasmo de um selvagem ou de um idiota.
Ele foi colocado de joelhos sobre a roda e sua camisa foi retirada até a altura da cintura. Preso por um novo conjunto de correias, de vez em quando, bufava ruidosamente.
Uma gargalhada explodiu na multidão quando a Corcunda de Quasímodo e seu peito de camelo foram expostos. No meio de toda a zombaria, um homem uniformizado, pequeno e de aparência robusta chegou perto do réu. Era Pierrat Torterue, carrasco do Châtelet.
Ele colocou no canto do pelourinho uma ampulheta preta. Em seguida, tirou o casaco e tomou em sua mão direita um chicote pequeno e fino com longas tiras brancas, retorcidas, cobertas de entalhes em metal. Com a mão esquerda, levantou com negligência a camisa em torno do braço direito até a axila. Por último, bateu o pé, e a roda começou a girar. Quasímodo balançou em suas amarras. O susto que se abateu abruptamente sobre seu rosto disforme fez com que as gargalhadas crescessem.
De repente, no momento em que a roda exibiu as costas de Quasímodo, Pierrat levantou o braço e as finas tiras assobiaram no ar, caindo sobre os ombros do miserável.
Quasímodo saltou sobre si mesmo, começando a compreender o que se passava.
Um segundo golpe abateu-se sobre ele, depois um terceiro e um outro e assim continuamente. A roda não cessava de girar, nem os golpes de cair.
O Corcunda retomou, pelo menos em aparência, a indiferença inicial, enquanto tentava romper as amarras em segredo. Seu olho iluminou-se, os músculos enrijeceram e as correias e correntes se esticaram. O esforço era potente, prodigioso e desesperado, e ele caiu esgotado. O susto deu lugar a um sentimento de amargor e profundo desânimo. Ele fechou o olho, deixou a cabeça tombar sobre o peito e se fingiu de morto. A partir daí, não se moveu mais.
Por fim, um funcionário da corte, que permaneceu ao lado da escada desde o início da execução, estendeu sua vara de ébano na direção da ampulheta. O carrasco parou e a roda também. O olho de Quasímodo reabriu lentamente. O flagelo havia terminado.
Dois criados do carrasco lavaram os ombros do condenado, friccionaram uma pomada qualquer que fechou imediatamente todas as feridas e lançaram-lhe sobre as costas uma espécie de camisão amarelo sem mangas.
Mas não estava tudo terminado ainda. Faltava ao sineiro sofrer a hora de pelourinho que o senhor Florian Bardebienne prudentemente havia acrescentado à sentença de Roberto d'Estouteville. Inverteu-se assim a ampulheta e o Corcunda foi atado à tábua, de modo que a justiça fosse feita até o fim.
O suplício não havia terminado. Choviam milhares de ofensas, vaias, risos e pedras daqui e dali. O tempo passava e ele estava havia uma hora e meia, pelo menos, sendo ridicularizado.
De repente, ele se agitou com um desespero redobrado e fez tremer toda a estrutura que o sustentava. Quebrando o silêncio que havia mantido até então, ele gritou, com uma voz rouca e furiosa:
- Água!
Esta exclamação de sofrimento, longe de atrair simpatia, serviu para aumentar a diversão do bom povo parisiense que cercava a escada. Ao fim de alguns minutos, Quasímodo lançou sobre a multidão um olhar desesperado e repetiu com uma voz ainda mais aflita:
- Água!
Todos riram, mas neste momento uma moça saiu do meio da multidão, acompanhada por uma pequena cabra branca de chifres dourados. Ela segurava um tambor na mão e o olho de Quasímodo cintilou: era a cigana a quem ele havia atacado na noite precedente.
Ele não duvidou de que ela também viesse se vingar como todos os outros e a viu subir a escada rapidamente. A cólera e o despeito o sufocavam. Ele desejou destruir o pelourinho e, se um raio lançado de seu olho tivesse o poder de fulminar, a egípcia seria transformada em pó antes de chegar ao topo da plataforma.
No entanto, ela aproximou-se do réu sem dizer uma palavra e, retirando uma garrafa da cintura, levou-a devagar aos lábios do miserável. Então, daquele olho tão seco e irritado, rolou uma grande lágrima que escorreu lentamente ao longo do rosto disforme, contraído pelo desespero. Era a primeira vez, talvez, que o desafortunado chorava.
A cigana apoiou, sorrindo, o gargalo na boca de Quasímodo. Ele bebeu em tragos longos, pois tinha uma sede ardente. Quando terminou, esticou os lábios para beijar a bonita mão que acabara de ajudá-lo, mas a moça esquivou-se com um gesto assustado de criança que teme ser mordida por um animal. Então, o pobre surdo fixou sobre ela um olhar cheio de uma tristeza inexprimível.
Era um espetáculo tocante ver a bonita moça, pura e encantadora, acorrer ao socorro de tanta miséria e deformidade. Todo o povo foi tomado pela cena, pondo-se a gritar:
- Viva! Viva!
Neste momento a enclausurada lançou uma maldição sinistra:
- Maldita seja, rapariga do Egito! Maldita!
Esmeralda empalideceu, descendo do pelourinho tremendo. Logo, chegou a hora de libertar Quasímodo e a multidão dispersou-se.
Perto da Ponte Grande, Mahiette, em companhia das duas companheiras, parou abruptamente:
- A propósito, Eustáquio, o que você fez com o bolo?
- Mãe, um cachorro deu uma mordida nele, e eu também!
- Criança terrível! - disse a mãe, sorrindo.

O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 8


CAPÍTULO 8
Fatalidade


Depois daquela manhã no pelourinho, os vizinhos de Notre-Dame notaram que o ânimo do sineiro havia esfriado bastante. Antes, eram badaladas a qualquer propósito, longas serenatas, ricas escalas executadas para um casamento ou para um batismo. A velha igreja, bastante vibrante e sonora, estava sempre numa perpétua celebração de sinos. Agora, a catedral parecia sombria e mantinha o silêncio. As festas e os enterros ouviam badaladas simples, secas e nuas. Diziam que não havia mais um músico na torre, mas Quasímodo continuava lá. O que se passava com ele, então? Permanecia a vergonha do pelourinho no fundo de seu coração ou ecoavam sem parar as chicotadas do carrasco em sua alma?
Um dia, Quasímodo sentiu retornar o amor pelos sinos e subiu a uma das torres, enquanto lá embaixo o sacristão abria todas as portas da igreja.
Chegando à alta câmara, o Corcunda observou os sinos com um triste balançar de cabeça, mas quando os tocou, tornou-se novamente feliz, esquecendo-se de tudo. Seu coração encheu-se de alegria e seu rosto desabrochou. Ele corria de uma corda a outra, animando seus companheiros de campanário.
De repente, ao olhar a praça, viu uma moça acompanhada por uma cabra cercar-se de um grupo de espectadores. Esta visão repentina alterou o curso de suas idéias e ele deu as costas para o carrilhão, fixando sobre a dançarina um olhar sonhador terno e suave.
Enquanto isso, o jovem estudante Jean Frollo percebeu ao se vestir que seus bolsos estavam vazios.
Um pensamento lhe ocorreu ao mesmo tempo em que amarrava as botas, mas ele o repeliu. Contudo, a idéia retornou e ele vestiu o colete ao contrário, sinal evidente de confusão interna. Por fim, atirando a boina no chão, gritou:
- Não importa! Seja o que Deus quiser. Irei procurar meu irmão. Receberei um sermão, mas terei algum dinheiro.
O jovem desceu a rua de Ia Harpe em direção à cidade e, após atravessar a ponte pequena e cruzar a rua Neuve-Sainte-Geneviève, encontrou-se na frente da catedral de Notre-Dame. A indecisão retornou, e ele passeou por alguns momentos, repetindo com angústia: "O sermão é certo, o dinheiro é duvidoso!" Interrompendo a caminhada de um sacristão que saía da igreja, perguntou:
- Onde está o arcebispo?
- Creio que em seu esconderijo Iá em cima - disse o sacristão. - E eu não o aconselho a perturbá-lo agora.
No entanto, Jean atravessou a pequena porta preta e pôs-se a subir a escada que levava aos andares superiores da catedral.
"Vou ver", dizia para si mesmo, enquanto percorria o caminho, "Deve ser interessante este claustro em que meu reverendo irmão se esconde perto das nuvens!"
Chegando à galeria das pequenas colunas, o estudante respirou um momento e exclamou:
- Sem dúvida é aqui.
A chave estava na fechadura e a porta, encostada. Ele empurrou-a suavemente e pôde ver um cubículo sombrio e mal iluminado onde havia uma poltrona, uma mesa, bússolas, provetas, esqueletos de animais pendurados e uma esfera rolando sobre o chão.
O quarto não estava deserto. Um homem, sentado na poltrona, curvava-se sobre a mesa, de costas para Jean, que via apenas seus ombros e a parte posterior do crânio. O estudante reconheceu o irmão, mas a porta abrira-se tão devagar que nada havia prevenido dom Cláudio de sua presença. Curioso, ele aproveitou para examinar por alguns momentos o aposento.
O cubículo apresentava um aspecto geral de abandono e de ruína e o mau estado dos utensílios fazia supor que o mestre estava, havia bastante tempo, distraído de seu trabalho por outras preocupações.
Contudo, inclinado sobre um vasto manuscrito ornado de pinturas esquisitas, ele parecia atormentado por uma idéia que vinha incessantemente misturar-se às suas meditações.
De repente, fechou o livro com violência, passando a mão sobre a testa, como para caçar a idéia que o obcecava. Em seguida, apanhou sobre a mesa um prego e um pequeno martelo, cujo cabo era curiosamente pintado com sinais cabalísticos, gravando na parede, em grego, a palavra "fatalidade".
"Meu irmão é louco", pensou Jean consigo mesmo, "Seria bem mais simples escrever em francês."
O arcebispo sentou-se novamente na poltrona e apoiou a cabeça com as duas mãos, como faz um doente que tem a testa pesada e febril. Vendo que o irmão retornava à imobilidade, Jean recuou lentamente e fez alguns ruídos de passos atrás da porta, a fim de anunciar sua chegada.
- Entre, senhor Jacques! - disse o arcebispo, do interior do cubículo. - Eu estava mesmo aguardando sua chegada e até deixei a chave sob a porta.
O aluno entrou corajosamente e dom Cláudio, extremamente incomodado pela indesejada presença, estremeceu:
- O quê? É você, Jean?
- Jean ou Jacques, pouco importa. Ambos começam com "j" - disse o aluno atrevidamente feliz.
O rosto de dom Cláudio retomou a expressão severa.
- O que você faz aqui?
- Meu irmão - respondeu o aluno -, vim pedir uma coisa da qual tenho grande necessidade.
- Senhor - disse o arcebispo em um tom frio -, estou muito aborrecido consigo.
- Que pena! - suspirou o aluno.
Dom Cláudio virou a poltrona e olhou fixamente para Jean, que se preparou para o duro choque:
- Jean, por toda parte reclamam de você. O jovem não respondeu.
- E seus estudos? - prosseguiu o padre balançando a cabeça.
O aluno levantou os olhos.
- Senhor meu irmão, gostaria que eu lhe explicasse em bom francês esta palavra grega que está escrita na parede?
- Que palavra? - perguntou o arcebispo, com um ligeiro
- Bom dia! - respondeu o homem de preto.
Os dois homens trocaram algumas palavras cujo sentido Jean não pôde perceber. Pareciam falar de ouro, de velhos pergaminhos e até de escultura.
- A propósito, ia esquecendo! Quando quer que eu mande prender a pequena bruxa e sua cabra diabólica? -perguntou Jacques Charmolue. - O processo está pronto. Quando começaremos?
O arcebispo empalideceu.
- Eu o avisarei a este respeito - balbuciou com a voz mal articulada.
- Está bem - disse Jacques Charmolue. - Irei ocupar-me dos outros dois acusados. Quanto à pequena Esmeralda, aguardarei suas ordens.
Dom Cláudio, absorto em seus pensamentos, não o ouviu mais. Pensando em Jean escondido sob o aquecedor, ele temeu algum truque e apressou-se em sair do quarto com Jacques Charmolue.
- Pronto, os dois gatos resmungões partiram! - disse o jovem, saindo de seu buraco. - Minha cabeça está zumbindo como um sino. Vou descer com o dinheiro de meu irmão e converterei todas as moedas em garrafas.
O estudante deu uma olhadela de ternura e de admiração no interior da carteira, tirou a poeira de suas pobres mangas sujas de cinza, assobiou uma canção, fez uma pirueta no ar e finalmente empurrou a porta, descendo as escadas, saltitante como um pássaro. Desembocando na praça, ele bateu o pé no chão, ao chegar à rua.
- Oh, bom e honroso solo de Paris! Maldita escada capaz de cansar até os anjos!
Deu alguns passos e, neste momento, ouviu uma voz forte e sonora pronunciar atrás dele uma série formidável de xingamentos.
- Pela minha alma! - gritou Jean. - Só pode ser meu amigo, o capitão Febo!
O arcebispo não ia distante, ainda acompanhado de Jacques Charmolue, quando estremeceu ao ouvir o nome de Febo. Virando-se, ele viu o irmão se aproximar de um corpulento oficial. Era, realmente, o capitão Febo de Châteaupers, que, apoiado contra o muro de uma casa, gritava como um pagão.
- Ora veja só, bom capitão! - disse Jean, apertando a mão do outro. - Onde aprendeu estas belas palavras?
- Perdão, bom camarada Jean! - disse-lhe Febo.
- Quer vir beber comigo? - perguntou o estudante.
- Quero, mas não tenho dinheiro.
- Pois eu tenho!
Jean balançou a carteira diante dos olhos do capitão majestosamente, enquanto o arcebispo aproximou-se deles sem ser percebido. Febo, então, disse ao amigo:
- Uma bolsa em seu bolso, Jean, é como a Lua num balde d'água. Nós a vemos, mas ela não está Iá. Aposto que são pedras!
Jean respondeu friamente:
- Aqui estão as pedras que enchem meu bolso!
E sem acrescentar uma só palavra, esvaziou a carteira sobre a calçada.
- Meu Deus! - murmurou Febo. É impressionante!
O estudante manteve-se impassível. Algumas moedas rolaram pela lama e o capitão, entusiasmado, abaixou-se para apanhá-las, mas Jean o conteve:
- Ora, capitão, deixe para Iá estas esmolas!
Febo contou o dinheiro, virando-se solenemente para Jean:
- Quem você roubou esta noite?
O estudante jogou para trás os louros cabelos encaracolados e disse com olhos desdenhosos:
- Tenho um irmão religioso e imbecil. -Aquele homem tão digno! - protestou Febo.
- Vamos beber! - desconversou Jean.
- Aonde iremos? Ao cabaré Maçã de Eva?
- Sim! Vamos à Eva e sua maçã! - respondeu o aluno, tomando o braço do oficial.
Os dois amigos puseram-se a caminho, e o arcebispo seguiu-os enfurecido. "Era este Febo quem um dia havia salvado Esmeralda?" O nome fora suficiente para que o arcebispo acompanhasse os dois amigos descuidados, observando seus menores gestos e ouvindo sua conversa. Nada mais fácil, tão alto falavam!
O som de um tambor chegou até eles vindo de uma encruzilhada vizinha e dom Cláudio ouviu o oficial dizer ao estudante:
- Maldição! Vamos apertar o passo, pois tenho medo de que a cigana me veja.
- Que cigana?
- A pequena da cabra.
- Esmeralda?
- Sim. Esqueço sempre seu nome. Vamos nos apressar. Não quero que esta moça se aproxime de mim.
- Você a conhece, Febo?
O capitão arrebentou de rir e se inclinou para falar no ouvido do amigo, mas dom Cláudio escutou a conversa. Um estremecimento percorreu o corpo do arcebispo e seus dentes rangeram. Ele tropeçou, mas continuou no encalço dos dois companheiros, que começaram a cantar a plenos pulmões uma velha canção.
O cabaré Maçã de Eva situava-se na Universidade, na esquina das ruas de Ia Rondelle e Bâtonnier. Era uma sala térrea, grande e baixa, com mesas por toda parte, jarros resplandecentes de estanho pendurados nas paredes (sempre influenciam os beberrões), uma vidraça que dava para a rua, uma videira na porta e, acima desta, uma placa enferrujada pela chuva, girando ao vento, onde se via o desenho de uma maçã e de uma mulher - a marca do local.
A noite caía e a encruzilhada estava escura. O cabaré, cheio de velas, resplandecia como uma forja. Ouvia-se o barulho dos copos e das brigas que escapava através dos vidros quebrados. Por meio da bruma que o calor da sala espalhava pela vitrine envidraçada, viam-se muitas figuras difusas e, ocasionalmente, um riso sonoro destacava-se.
Um homem passeava pela frente da barulhenta taberna observando seu interior e não se afastando mais do que uma sentinela de sua guarita. Cobria-se com uma capa que lhe escondia o nariz, sem dúvida para protegê-lo do frio das noites de março ou talvez para esconder seu hábito. Ocasionalmente, parava diante da vitrine, ouvia, olhava e batia o pé.
Por último, a porta do estabelecimento se abriu, o que ele parecia esperar, e dois bêbados saíram. O raio de luz vindo de fora ruborizou por um instante as alegres figuras.
O homem de casaco permaneceu observando escondido sob um pórtico do outro lado da rua.
- Eu asseguro - dizia um dos homens - que não moro mais na rua Mauvaises-Paroles. Moro na rua Jean-Pain-Mollet.
- Meu amigo, você está bêbado - disse o outro. Tratava-se, é claro, do capitão e do estudante. Parece que o homem que os vigiava na sombra também os reconheceu, porque seguia, a passos lentos, todos os ziguezagues que o jovem obrigava o capitão a fazer. Acompanhando-os cuidadosamente, o homem de casaco pôde escutar a interessante conversação que se segue:
- Agora tente andar direito, senhor estudante, pois preciso deixá-lo.
- Então, suma!
- A propósito, Jean, você não tem mais dinheiro? Bebemos toda a carteira de seu irmão? Não temos mais nada? Diga, Jean, ainda temos algumas moedas? Responda ou vou revistá-lo! Céus, volte a si! Necessito apenas de um pouco de dinheiro.
Jean fingiu-se de surdo e aquilo exasperou o capitão, que empurrou cruelmente o estudante, fazendo-o deslizar contra a parede e cair suavemente sobre a calçada. Febo ajeitou com o pé o amigo sobre um monte de talos de couve jogados na rua, acomodando sua cabeça, no mesmo instante em que Jean começava a roncar.
- Azar o seu se a carroça do guarda noturno o apanhar! -disse o capitão ao pobre bêbado adormecido, afastando-se.
O homem de casaco, que não havia parado de segui-los, recuou um instante diante do jovem deitado, pois um tipo de indecisão o agitou. Em seguida, dando um suspiro profundo, prosseguiu no encalço do capitão.
Jean permaneceu dormindo sob o olhar benevolente das estrelas. Desembocando na rua Saint-André-des-Arts, o capitão Febo percebeu que alguém o seguia. Ele viu, ao virar os olhos por acaso, uma sombra que rastejava atrás de si, ao longo dos muros. Ele parou, ela também. Recomeçou a caminhar e a sombra idem. Aquilo o preocupou muito pouco.
"Oras bolas", pensou, "Não tenho dinheiro. Nem nada que se possa roubar".
A rua estava completamente deserta e, ao parar novamente, ele viu a sombra aproximar-se a passos lentos. O capitão era corajoso e não se incomodaria com um ladrão, mas esta estátua que andava, este homem petrificado, o congelou. Finalmente, o capitão quebrou o silêncio, esforçando-se para rir.
- Se o senhor é um ladrão, como acredito, parece uma garça que tenta abrir uma noz. Sou de uma família arruinada, meu caro. Procure outra vítima.
A mão da sombra saiu do casaco e desceu sobre o braço de Febo com o peso das garras de uma águia. Ao mesmo tempo, uma voz ressoou:
- Capitão Febo de Châteaupers!
- Como sabe meu nome?
- Não sei apenas seu nome - continuou o homem de casaco com sua voz sepulcral. - Sei também que tem um encontro esta noite.
- Sim! - respondeu Febo, estupefato.
- Às sete horas, não?
- Exatamente!
- Com uma cigana que se chama...
- Esmeralda! - disse Febo alegremente.
Ao ouvir este nome, o espectro agitou com fúria o braço de Febo e o capitão sacou sua espada, dizendo com a voz sufocada pela raiva:
- Basta! Lutemos!
- Capitão, está se esquecendo de seu encontro.
Tais palavras fizeram baixar a espada do capitão, que disse:
- O senhor tem razão. Teremos tempo de nos enfrentar amanhã. Parece bastante forte. Agradeço se me for permitido manter a palavra. Vou partir, então, para cuidar de um assunto importante... Ah! Ia esquecendo! Não tenho nenhum dinheiro.
- Aqui há algo que pode ajudá-lo.
Febo sentiu a mão fria do desconhecido deslizar na sua uma grande moeda. Ele não pôde recusar o dinheiro e apertou esta mão.
- Deus! - exclamou. - O senhor tem bom caráter!
- Alto Iá, imponho-lhe uma condição! - disse o homem. - Esconda-me em algum canto de onde eu possa ver se esta mulher é realmente aquela cujo nome acabou de dizer. Preciso saber se é ela.
- Para mim tanto faz - respondeu Febo. - Siga-me e eu o colocarei num canil de onde poderá nos ver e escutar. Não tenho nada a esconder.
Logo, o homem misterioso, que era ninguém menos que dom Cláudio Frollo, foi fechado num cubículo sem janela onde se abaixou no meio da poeira e do entulho que se esfarelava a seus pés. Sua cabeça queimava e, tateando ao redor de si com as mãos, ele encontrou um pedaço de vidro quebrado que apoiou sobre a testa, aliviando-o ligeiramente.
Após um quarto de hora, parecia ter envelhecido um século. De repente, ouviu estalar os degraus da escada de madeira. Alguém subia. Havia na porta corroída de seu calabouço uma fenda suficientemente larga e ele colou seu rosto a ela. Desta maneira, podia ver tudo o que se passava no quarto vizinho.
Febo e Esmeralda estavam a sós, sentados sobre um baú de madeira. A moça, vermelha, atônita e excitada, traçava com a extremidade dos dedos linhas a esmo. Não se viam seus pés, pois a pequena cabra alojara-se sobre eles.
- Não me despreze, senhor Febo - dizia a moça, sem levantar os olhos. - Sou uma infeliz.
- Desprezá-la? Por quê?
- Infelizmente, não cumpri uma promessa. Não voltarei a encontrar minha mãe e o amuleto perderá sua força. Mas o que importa?
Falando assim, ela manteve fixos os grandes olhos pretos sobre o capitão.
- Claro que a compreendo! - disse Febo, sem entender nada.
Esmeralda calou-se por um momento e em seguida declarou:
- Capitão, o senhor é bom e generoso. Salvou a mim, uma pobre criança perdida.
Durante alguns momentos, a moça falou de modo misterioso e parecia sonhar.
- O que é isto? - perguntou o capitão, apontando para o amuleto que ela levava no pescoço.
- Não o toque! - ela advertiu, entrando numa espécie de transe. - É meu protetor. É ele quem me fará reencontrar minha mãe, se eu merecer. Deixe-me, senhor capitão! Minha mãe! Minha pobre mãe! Onde você está?
De repente, acima da cabeça de Febo, ela vislumbrou uma sombra maligna que segurava um punhal. Era o arcebispo. Ele estava ali, e o oficial não podia vê-lo. A moça permaneceu imóvel, congelada, muda, diante da terrível aparição. Nem mesmo gritou, quando viu a lâmina descer sobre o capitão.
- Maldição! - gritou o oficial. Ele caiu e ela desmaiou.
Quando recobrou os sentidos, soldados da ronda a cercavam, enquanto Febo era carregado, banhado em sangue. O padre havia desaparecido. A janela do fundo do quarto, que dava para o rio, estava escancarada. Alguém apanhou um casaco que se supunha pertencer ao oficial e ela ouviu dizer ao seu redor:
- É uma bruxa que acaba de apunhalar um capitão.

O Corcunda de Notre-Dame, Victor Hugo - 9


CAPÍTULO 9
A moeda transformada em folha seca


Gringoire e todo o Pátio dos Milagres estavam numa apreensão mortal. Não se sabia, há um mês, o que havia acontecido com Esmeralda e sua cabra, o que aumentava ainda mais a dor do poeta, que gostava quase tanto do animal quanto de sua dona. Uma noite, a cigana desapareceu e desde então não dera sinal de vida. Todas as investigações haviam sido inúteis e ele não conseguia explicar este sumiço. Era uma tristeza profunda. Ele teria emagrecido, se tal coisa fosse possível.
Um dia, ele percebeu uma multidão diante de uma das portas do Palácio de Justiça.
- O que é aquilo? - perguntou a um rapaz que se afastava.
- Não sei ao certo, senhor - respondeu o rapaz. - Dizem que estão julgando uma mulher que assassinou um policial. Como parece que há alguma bruxaria envolvida, meu irmão, o arcebispo, está cuidando disso. Eu queria falar com ele, mas não pude chegar até Iá devido à multidão e isso me deixa bastante contrariado porque preciso de dinheiro.
- Que pena, meu senhor! - disse-lhe Gringoire. - Eu gostaria de poder emprestar-lhe algum, mas não trago nada nos bolsos.
O poeta não ousou dizer ao rapaz que conhecia seu irmão, o arcebispo. O estudante seguiu seu caminho e Gringoire pôs-se a acompanhar a multidão, que subia as escadas do grande tribunal. Ele pensou que não havia nada como o espetáculo de um processo para dissipar a melancolia.
O povo no meio do qual ele se misturara, andava e se amontoava em silêncio. Após lenta caminhada por um longo corredor, o poeta chegou a uma porta baixa que desembocava numa sala ampla e sombria. Era noite e várias velas já estavam acesas aqui e ali sobre as mesas. A parte anterior da sala era ocupada pela multidão; à direita e à esquerda havia homens de túnicas nas mesas; ao fundo, sobre um estrado, muitos juizes mergulhavam seus rostos na penumbra.
- Meu senhor - perguntou Gringoire a um vizinho -, o que fazem todas essas pessoas aqui?
- Estão julgando uma mulher. Não podemos vê-la, pois ela está de costas para nós, encoberta pela multidão.
- E quem é ela? - perguntou Gringoire. - O senhor sabe seu nome?
- Ainda não, porque acabo de chegar. Suponho apenas que se trate de bruxaria.
Neste instante, os vizinhos impuseram silêncio aos dois tagarelas, pois iria ser ouvido um testemunho importante.
- Senhores - dizia, no meio da sala, uma velha cujo rosto desaparecia sob a vestimenta -, uma noite, eu estava costurando, enquanto o moleque brincava, perto de mim. Bateram à minha porta e eu abri. Dois homens entraram: um todo vestido de preto; o outro, um belo oficial. Viam-se apenas os olhos do que estava de preto, duas brasas. De resto, tinha apenas casaco e chapéu. Eles me pediram um quarto e eu lhes dei um aposento do andar superior. Eles me deram uma moeda. Fechei a moeda em minha gaveta e subimos. Ao chegarmos ao quarto, no momento em que virei as costas, o homem de preto desapareceu e aquilo me deixou um pouco surpresa. O oficial, que era bonito como um fidalgo, desceu comigo e saiu. Fui fazer umas costuras, quando ele retornou com uma moça, que trazia consigo um bode, um grande bode, preto ou branco, não sei mais. Eu os fiz subir para o quarto do andar superior, onde os deixei sozinhos, ou melhor, com o bode. Desci e continuei a costurar. De repente, ouvi um grito vindo de cima e algo cair no chão. A janela se abriu. Corri então para a minha janela, que fica bem embaixo deste quarto, e vi passar, diante de meus olhos, uma massa preta que caiu na água. Era uma noite de lua clara. Eu o vi, muito bem, nadando na direção da cidade. Então, tremendo, chamei a ronda. Estes senhores entraram e nós subimos. O que foi que encontramos? Meu pobre quarto coberto de sangue, o capitão estendido no chão com um punhal cravado no pescoço, a moça fingindo-se de morta e o bode muito assustado. Em seguida, levaram o oficial, pobre rapaz, e a moça. Esperem. O pior é que no dia seguinte, quando quis pegar a moeda para comprar tripas, encontrei uma folha seca no lugar.
A velha ignorava que, enquanto mostrava o quarto, a criança pegara a moeda, colocando em seu lugar uma folha seca que arrancara de um feixe. A testemunha calou-se, e um murmúrio de horror circulou pela audiência.
- Silêncio! - disse um magistrado, Jacques Charmolue. - A senhora trouxe a folha seca?
- Sim, senhor, aqui está.
- É uma folha de bétula, nova prova de magia - disse Charmolue.
Neste momento, Philippe Lheulier, advogado extraordinário do rei, interveio:
- Gostaria de lembrar que temos o testemunho do capitão Febo de Châteaupers.
Ao ouvir este nome, a acusada levantou-se e sua cabeça surgiu acima da multidão. Gringoire, aterrorizado, reconheceu Esmeralda. Os cabelos, antes graciosamente trançados, caíam em desordem e a pele empalidecera.
- Febo! - exclamou confusa. - Onde ele está? Digam-me se está vivo.
- Cale-se, mulher! - respondeu o presidente. - Não é este nosso assunto.
- Por piedade! Digam-me se ele ainda vive - continuou, e ouviram-se suas correntes rangerem ao longo do vestido.
- Está bem! - disse secamente o advogado do rei. - Ele morreu. Está contente?
A infeliz recaiu sobre o assento, sem voz e sem lágrimas, branca como uma imagem de cera e não deu mais sinal de vida. Foi necessário, para acordá-la, que um sargento a agitasse sem piedade e que o presidente do tribunal levantasse solenemente a voz:
- Cigana da Boêmia, com a cumplicidade de sua cabra enfeitiçada, na noite do dia 29 de março passado, você apunhalou um capitão dos arcos do rei, Febo de Châteaupers. Continua a negar?
- Que horror, eu nego! - disse a jovem com olhos cintilantes.
- Então, como explica as acusações?
- Já disse: não sei! Foi um padre. Um padre que não conheço. Um sujeito infernal que me persegue!
- É isto! - continuou o juiz.
- Senhores, tenham piedade de mim, sou apenas uma pobre moça...
- ...do Egito - completou o juiz.
Jacques Charmolue tomou a palavra com doçura:
- Considerando a obstinação dolorosa da acusada, solicito seu interrogatório.
- Aceito - disse o presidente do tribunal.
O corpo da infeliz tremia. Ela levantou-se, no entanto, e caminhou com um passo bastante firme em direção a uma porta que se abriu de repente e fechou-se assim que ela passou, o que deu ao triste Gringoire a impressão de que uma boca horrível acabava de devorá-la.
A audiência foi suspensa. Um conselheiro, tendo feito observar que aqueles senhores estavam cansados e que o fim da tortura ainda tardaria bastante, obteve como resposta do presidente que um magistrado deve saber sacrificar-se pelo dever.
Procedeu-se assim ao interrogatório da prisioneira. A pobre moça fez um grande esforço para manter a coragem, mas estremeceu quando as mãos calosas dos criados de Pierrat Torterue, o carrasco-mor, ajustaram seus belos pés nos terríveis ferros em que eles ficariam presos, a partir de então. Ela soltou um urro de dor quando Pierrat fechou a tranca e seu pé foi mordido por esta cruel engenhoca e confessou.
Confessou tudo que os inquiridores queriam ouvir: seu envolvimento com o diabo e o assassinato do capitão. Soltaram-lhe os pés e ela foi levada de volta para o tribunal.
Ao retornar à sala da audiência, pálida e mancando, um murmúrio geral de satisfação a acolheu e ela foi arrastada de volta para seu lugar. Charmolue sentou-se, levantou-se em seguida e disse sem deixar transparecer em demasia a vaidade:
- A acusada confessou.
- A mulher da Boêmia - continuou o presidente - confessou todos os atos de magia e o assassinato do oficial Febo?
O coração de Esmeralda apertou-se e foi possível ouvi-la soluçar na sombra.
- Tudo o que senhor quiser - respondeu fracamente.
- Senhor promotor do rei - disse o presidente -, o tribunal está pronto para ouvir a sentença que Vossa Excelência requisitar.
Charmolue exibiu um caderno assustador e pôs-se a ler, com muitos gestos, um texto em latim. O orador declamava tão bem que o suor lhe escorria da testa e os olhos saltavam-lhe da cabeça.
Em seguida, o escrevente pôs-se a redigir a sentença e, por fim, passou ao presidente um longo pergaminho. Neste momento, a infeliz pôde ouvir uma voz glacial que dizia:
- Mulher da Boêmia, no dia em que convier ao rei, ao meio-dia, será levada numa carroça diante do grande por tal de Notre-Dame, a fim de pedir perdão com uma tocha de cera na mão. De lá, será conduzida à Praça da Greve, onde será enforcada com sua cabra, para reparar os crimes que praticou e confessou: bruxaria, magia e o assassinato de Febo de Châteaupers. Deus tenha piedade de sua alma!
- Oh! É um sonho! - ela murmurou, sentindo duras mãos levarem-na a uma cela subterrânea do Palácio da Justiça.
Nesta masmorra, ela se viu perdida nas trevas, enterrada, escondida, enclausurada. Quem a olhasse nesse estado, após tê-la visto rir e dançar ao sol, teria calafrios. Fria como a noite, fria como a morte, nem mais um sopro de vento em seus cabelos, nem mais um som humano aos seus ouvidos, nem mais um brilho do dia em seus olhos. Abatida, esmagada pelas correntes, agachada perto de um jarro e de um pedaço de pão, sobre um pouco de palha numa poça d'água que se formava. Sem movimento, quase sem respirar, Esmeralda não sofria mais.
Desde que chegou ali, não acordava nem dormia. No calabouço, não podia mais distinguir o dia da noite, o sonho da realidade.
Também paralisada, congelada, petrificada, mal notou duas ou três vezes o som de um alçapão que se abria em algum lugar acima dela pelo qual uma mão lhe atirava uma casca de pão preto.
Apenas uma coisa ainda ocupava mecanicamente seu ouvido: acima de sua cabeça, uma gota de água pingava, a intervalos iguais, da abóbada de pedras mofadas.
Não havia nenhum outro barulho além deste.